Dahmer: Um Canibal Americano — Realidade Vs. Ficção

Sem medo de errar, a série Dahmer: Um Canibal Americano, que estreou recentemente na Netflix, era a obra mais esperada do ano para os fãs do true crime. E...

Sem medo de errar, a série Dahmer: Um Canibal Americano, que estreou recentemente na Netflix, era a obra mais esperada do ano para os fãs do true crime. E não é para menos. Ela se baseia na história de Jeff Dahmer, de longe, a maior aberração homicida dos últimos 30 anos. Jeff é um enigma psiquiátrico que nossa geração não conseguiu explicar. E não vejo isso ocorrendo tão cedo. O que ele fez em vida é inexplicável e, de tão midiático, sua história foi contada e recontada tantas vezes que muitos acreditam ter todas as respostas, mas ao contrário do que muita gente pensa, grande parte de sua história é completamente desconhecida.

Jeff e eu temos uma estranha ligação. Era criança quando ele foi preso, e sua imagem protegida das pessoas por uma barreira de vidro à prova de balas bagunçou minha mente. Já adulto eu o redescobri. O primeiro grande texto do OAV Crime foi sobre ele, em 2010. No ano seguinte, reescrevi sua história em um texto que ainda hoje é referência na Internet brasileira. Nos 10 anos seguintes nunca parei de pesquisar sobre Jeff Dahmer. Tive acesso aos documentos do MPD (Departamento de Polícia de Milwaukee), explorei artigos e reportagens de época, assisti a todos os documentários lançados e li todos os livros disponíveis sobre o caso — e até escrevi o meu próprio, ainda não lançado. Também destrinchei em uma mesinha os arquivos do FBI sobre o “Canibal de Milwaukee” e até publiquei alguns posts desses arquivos aqui no OAV Crime.

Como eu, há muita gente por aí fascinada pela história, não pelos atos, mas pela busca da verdade. Entender os medonhos e intrincados mecanismos pelos quais sua mente funcionava é a grande charada do mundo dos assassinos em série.

Ninguém até hoje a desvendou. Mas ainda continuamos a trabalhar no enigma.

A SÉRIE


Eu li publicações por aí sobre a série ser a “obra definitiva sobre Jeff”. Tal comentário é absurdo e risível, dado que nenhuma obra audiovisual pode chegar perto da história real, não se consegue fazer isso nem com livros, imagina com um produto comercial de entretenimento em massa. Coloquem uma coisa na cabeça: séries e filmes romantizam a história, inventam personagens, diálogos e situações; os produtores e o estúdio estão interessados no sucesso, na venda, e não em contar detalhe por detalhe do que realmente se passou. Isso, comumente, é uma tarefa para escritores e seus livros.

Como qualquer série “baseada em uma história real”, Dahmer: O Canibal Americano abre espaço para interpretar, à sua maneira, os fatos que aconteceram na realidade. Ao terminar de assisti-la, fiquei surpreso com a quantidade de inconsistências e inverdades, portanto, se você busca se aprofundar na história real, sugiro procurar em outro lugar. Por outro lado, como entretenimento, pode soar interessante para alguns.

Sendo assim, decidi escrever este post para informar o que é Realidade e o que é Ficção em Dahmer: O Canibal Americano. A seguir, episódio por episódio, analiso os acontecimentos dramatizados à luz do que se sabe sobre o caso real.

Dahmer: O Canibal Americano, saiba o que é verdade e o que é invenção neste novo lançamento da Netflix.

EPISÓDIO I


Neste post comentarei apenas as cenas pertinentes de cada episódio. Nesse sentido, o primeiro episódio começa bem, mostrando o pesado sistema de trancas que Jeff tinha em sua porta. Isso é verdade. Ele não queria ninguém entrando em seu apartamento, não é mesmo? Na vida real, Jeff instalou fechaduras extras e até um sistema de câmeras, que ele comprou em um shopping. Ele morava num local barra pesada e já havia sido roubado, então, qualquer cuidado extra ainda era pouco.

A seguir, a série mostra sua vizinha interpelando-o a respeito do mau cheiro que emana de seu apartamento. Ele dá desculpas de que sua carne estragou e seus peixes morreram. Embora diferente, isso também corresponde com a realidade, pois essas foram algumas das desculpas usadas por Jeff para acalmar sua vizinha e o síndico do prédio onde morava, os Apartamentos Oxford. O ar de suspense e medo da vizinha é por conta da série. Na vida real, Jeff não assustava ninguém (isso só aconteceu uma vez, com uma psicóloga).

A primeira grande derrapada da série é mostrada a seguir, quando Jeff, na boate gay Club 219, aborda três homens no bar e paga cerveja. Ele dança na pista e interage com os três rapazes. Após fazer uma oferta de cinquenta dólares por fotografias, ele leva um deles, Tracy Edwards, até o seu apartamento.

Vamos por partes.

O Jeff real dançando na pista de dança ou interagindo com pessoas é uma imagem inexistente. Jeff Dahmer era esquizotípico, ele não interagia com ninguém. Em toda sua vida, nunca teve um amigo e nunca teve um encontro da forma como pessoas normais têm. Jeff era realmente estranho, mas ele aprendeu a abordar homens e, no caso das boates, isso acontecia sempre no fim da festa, quando a boate estava fechando. Era o momento mais adequado para ele. Ele entrava na boate, sentava numa cadeira e ficava lá a noite inteira, observando. Quando abordava alguém, tinha preferência por homens que estavam sozinhos.

Outro erro reside em Tracy Edwards. Jeff não conheceu Tracy na boate. Na vida real, Tracy foi abordado na porta de um shopping, o Grand Avenue Mall, e durante o dia. Tracy, também, não frequentava boates gays. Ele não era homossexual e até foi condenado por estupro. Jeff e Tracy se conheciam, é verdade, mas de vista. Ambos moravam no mesmo bairro e se esbarraram algumas vezes.

As incorreções continuam na cena do apartamento. Jeff é mostrado colocando uma droga na cerveja de Tracy, mas na vida real, foi exatamente o oposto que salvou a vida do rapaz: Jeff estava sem drogas, por isso não dopou-o. A vizinha escutando as conversas por um duto de ar também é invenção da série. Outra imprecisão é mostrada quando Jeff usa o aquário para distrair Tracy e algemá-lo. Na verdade, Jeff deixou Tracy sozinho na sala e foi até o quarto, curioso, Tracy se levantou do sofá e foi ver o aquário. Segundos depois, Jeff veio por trás e algemou um dos punhos de Tracy. Outra coisa: a faca usada por Dahmer para ameaçar Tracy era muito menor do que a mostrada na série.

O verdadeiro Tracy Edwards durante testemunho no julgamento de Jeffrey Dahmer. Na série, Edwards é erroneamente mostrado como gay e frequentador do Club 219. Foto: Jeffrey Phelps, Milwaukee Journal Sentinel.

A série acerta, entretanto, ao mostrar Dahmer colocando o filme O Exorcista III, pois era exatamente isso o que ele fazia com algumas vítimas: colocar filmes que gostava no videocassete para assistir junto com elas. A dinâmica da macabra sessão pipoca na vida real, entretanto, foi mais complexa e assustadora, e envolveu Dahmer indo e vindo de um estado dissociativo (não mostrado na série), enquanto Tracy tentava, em determinados momentos, convencer o dono do apartamento a deixá-lo ir embora. Tracy nunca lambeu ou se ofereceu a Jeff, tampouco dançou pra ele e ficou de quatro no chão, mas sugeriu que poderia tirar a camisa para Jeff tirar suas malditas fotos.

A série acerta ao mostrar Jeff acelerando o filme até as cenas que mais lhe agradavam, normalmente quando o Demônio demonstrava o seu poder. Da mesma forma, Jeff adorava sentir os batimentos cardíacos de suas vítimas e, para Tracy, disse que comeria o coração dele “mais tarde”, e isso é mostrado.

Na série, Tracy foge enfiando o dedo no olho de Jeff e acertando-o com uma lâmpada. Na vida real foi diferente. Durante uma das “crises” dissociativas de Jeff, Tracy aproveitou para se levantar e o socou, Dahmer acordou de seu estado letárgico e foi atrás de Tracy, mas ele estava muito bêbado e Tracy foi capaz de abrir a porta e sair correndo. Em O Canibal Americano, após escutar a gritaria, a vizinha é mostrada saindo de sua porta e olhando para um Jeff prostrado. Assustada, ela volta para o apartamento. Isso, também, é ficção (vocês entenderão mais pra frente porque todas as cenas envolvendo esta vizinha dentro dos Apartamentos Oxford nunca aconteceram).

A dinâmica da prisão de Jeff também foi diferente. Embora Tracy tenha sido abordado por policiais em uma viatura na rua e os três homens voltado até o apartamento, Jeff reagiu quando um dos policiais caminhou até a geladeira. Havia uma cabeça dentro e o dono do apartamento não queria que fosse encontrada. Jeff estava sentado no sofá quando um dos policiais levou as fotografias que encontrou em seu quarto até o seu parceiro e disse: “Elas são reais”. A briga entre Jeff e os dois policiais, também foi feroz, e isso não foi mostrado.

Lionel Dahmer, pai de Jeff, sendo acordado na madrugada por um telefonema foi outra invenção. Ninguém avisou ele sobre Jeff, ao contrário, ele descobriu que o filho havia sido preso quando ligou na manhã seguinte para o apartamento dele e um detetive atendeu. O investigador não falou muita coisa para Lionel e o homem passou as horas seguintes realizando várias ligações para tentar entender o que se passava. Então, diferentemente do que foi mostrado, ele não pegou um carro na madrugada e saiu dirigindo de Ohio, onde morava na época, até Milwaukee, no Wisconsin, uma terrível viagem de cerca de 14 horas. Na vida real, ele pegou um avião. Da mesma forma, ele não foi interrogado por Dennis Murphy e Pat Kennedy naquela madrugada, porque só chegou em Milwaukee no outro dia. (Na verdade, Lionel nunca foi interrogado por esses dois detetives). Agora eu vou contar uma coisa aqui. Sabem quem foi acordado naquela madrugada com um telefonema? Dennis Murphy (na série, o interrogador negro). Interrogador número 1 do MPD, Murphy foi chamado às pressas para assumir aquele que se tornaria o maior caso homicida da história do estado do Wisconsin. Mas essa é uma história para depois.

Em relação ao interrogatório de Lionel, apesar de falso, a série acerta no sentido de mostrar que o homem, quando soube que o filho era investigado por homicídio (e ele ficou sabendo disso por telefone, quando ainda estava em Ohio), imaginou que Jeff era a vítima e não o algoz. Lionel enxergava o filho como apático, geralmente passivo e lento para a raiva. Não havia maneira dele imaginar Jeff como assassino. Também, sua fala na série sobre a operação da hérnia, separação da mãe de Jeff, e como isso o afetou aos 18 anos, são verdadeiras.

As citações sobre as evidências encontradas condizem com a realidade: crânios humanos, partes de corpos congelados, fotografias das vítimas, ossos, um esqueleto completo. O infame barril azul, entretanto, não foi aberto na cena do crime, como é mostrado na série. Na vida real, o médico legista Jeffrey Jentzen ficou com medo, pois não sabia o que havia dentro, e imaginou que era melhor levar até às instalações do instituto médico legal.

Sabemos que o interrogatório de Lionel nunca aconteceu, portanto, a fala sobre canibalismo também é invenção. Lionel só descobriu sobre esse comportamento horroroso do filho durante o seu julgamento, ocorrido seis meses depois. Detalhes do caso foram mantidos em segredo, apesar do falatório da mídia e suspeitas a respeito.

No fim, o episódio relata sobre a descoberta de 15 corpos humanos no apartamento 213, mas na realidade foram 11. A obra acerta ao mostrar que todos os moradores dos Apartamentos Oxford foram tirados de seus lares. No início, os investigadores não sabiam se os materiais tóxicos encontrados no apartamento de Jeff eram perigosos ou não, e coube ao próprio Jeff dizer que não havia problema nenhum, desde que os líquidos permanecessem dentro de seus recipientes. Tais líquidos, no caso, era o ácido muriático usado para dissolver as últimas vítimas.

Imagem tirada em 1991 da fachada dos Apartamentos Oxford, local onde morou Jeffrey Dahmer.

EPISÓDIO II — NÃO VAI, POR FAVOR


Achei bem legal o início do episódio, mostrando uma entrevista com um policial negro e a fala de uma repórter, os roteiristas reproduziram fielmente (apesar de terem trocado o sexo do repórter) a primeira entrevista e a primeira reportagem do caso, e quem tiver curiosidade, pode assistir aqui os originais. Após a prisão, levado até a delegacia, Jeff sentou-se com o grandalhão Patrick Kennedy. Isso na vida real, pois na série, ele já começa sendo interrogado por dois policiais: Kennedy e Murphy. Na realidade, Murphy só chegou horas depois (lembram dele ser acordado com um telefonema na madrugada?) e, nesse meio tempo, Kennedy fez um trabalho sensacional ao ganhar a confiança de Jeff e extrair a sua confissão. Diferentemente do que é mostrado na série, levou-se algumas horas até Jeff perceber que a casa havia caído e que ele não tinha escapatória, só assim ele decidiu ser sincero e confessar tudo.

A partir da cena na delegacia, a série se passa num flashback, e faz todo sentido, pois em sua confissão para Kennedy, Jeff voltou ao passado na tentativa de explicar a si mesmo — seu irmão mais novo chorão, sua mãe suicida entupida de fármacos estirada na cama foram boas representações do que realmente foram aqueles tempos. Joyce, mãe de Jeff, lutou a vida inteira contra uma doença mental misteriosa, que a fazia se encher de drogas e ter um comportamento autodestrutivo. Seu pai, mais preocupado com o trabalho do que a família, vivia distante. A casa era um antro de brigas entre marido e esposa. A cena oculta onde Joyce puxa uma faca para o marido aconteceu na vida real. Uma observação a ser feita é que a série já mostra Lionel batendo de frente com a esposa instável, mas isso só ocorreu após anos de casamento, quando o mesmo já estava degradado. Lionel sempre foi avesso a brigas, sua personalidade era do tipo monótona/passiva, como a do filho, e ele odiava conflitos. Mas chegou um ponto em que a gritaria de Joyce e seu destempero o fizeram revidar.

Quando tinha 7 anos, Jeff fez amizade com um garotinho chamado Lee. Ambos eram vizinhos e estudavam juntos numa escola primária de Barberton, Ohio. Certa vez, Jeff deu alguns girinos a uma professora e posteriormente descobriu que ela presenteou Lee com os animais. Enciumado, Jeff entrou na garagem da família Lee e despejou óleo de motor no recipiente contendo os girinos, matando-os. Embora com modificações, este episódio é mostrado na série. Tal comportamento deve ser visto com cuidado, pois a série passa a impressão de que este comportamento de Jeff já era um indicador dele como um indivíduo anormal. O que temos que ter em mente é que estamos falando de uma criança de sete anos, que pelo o que a história indica matou os girinos durante um ato de ciúmes, inveja e raiva. Crianças são assim, elas agem por impulso e fazem coisas estúpidas e sem sentido. Eu mesmo quando criança matei alguns bichos e vi amigos fazendo o mesmo. As pessoas ficariam assustadas se soubessem da quantidade de atrocidades que crianças fazem com animais. Gerações inteiras cresceram despedaçando cabeças e corpos de pássaros no estilingue. Na maioria das vezes, entretanto, são ações impensadas de seres que não sabem o que estão fazendo.

Cortando para 1981, a série mostra Jeff já adulto em Miami, época que morou na cidade após ser dispensado pelo exército. Quando morou em Miami, Jeff falou com seu pai por telefone algumas vezes. Diferentemente do que afirma a série, Dahmer não implorou para voltar para a casa do pai em Bath, Ohio, pelo contrário, alcoólatra, sem dinheiro e vivendo nas ruas, mais uma vez pediu dinheiro para manter sua estadia na cidade. Eu li uma entrevista de sua madrasta, Shari, que se casou com Lionel no fim de 1978, em que ela afirma que foi ela quem atendeu ao telefonema de Jeff e negou enviar dinheiro, fazendo uma proposta ao rapaz: se Jeff aceitasse, ela compraria uma passagem de avião para Jeff voltar para Ohio. Ele aceitou. Pai e madrasta, então, foram recebê-lo no aeroporto de Cleveland e não em uma parada de ônibus, como mostra a série. (E na série, apenas Lionel aparece para buscá-lo).

Jeff foi morar com a avó em West Allis, Wisconsin, após falhar em endireitar sua vida (isso não é mostrado em O Canibal Americano, nem sua prisão por arruaça em Bath). Ele é mostrado trabalhando no açougue de um polonês e, isso, também, é invenção. Na vida real, ele trabalhou por pouco tempo em uma casa de coleta de sangue e posteriormente em uma fábrica de chocolates. O roubo do manequim, entretanto, é bem real e realmente aconteceu. Jeff se escondeu numa loja e roubou o objeto com intuito de usar para fins sexuais, mas a série falha em não explicar o porquê disso — ele travava uma batalha violenta com sua própria mente: roubar o manequim foi uma forma dele ficar longe de homens; ele não queria matá-los para abusar e cortar seus corpos, então, tentou usar um manequim como substituto de suas fantasias. A diversão acabou quando sua avó descobriu o boneco e avisou Lionel.

Mais um corte, dessa vez até 1991, mostra Jeff olhando para uma vítima estirada em sua cama — Tony Anthony Hughes, de 31 anos. O assassino loiro caminha até uma loja de bebidas e atrai um garoto asiático com bebida. Seu nome real é Konerak Sinthasomphone. Quem conhece a história verdadeira ficou decepcionado aqui. Primeiro: Jeff quase nunca abordava uma vítima na presença de outras pessoas. Ele era traiçoeiro, um predador. No caso Konerak, o garoto foi abordado sozinho, durante o dia, nas imediações do Grand Avenue Mall. Naquele domingo, 27 de maio de 1991, Jeff foi até o shopping e ficou a tarde inteira procurando por uma vítima. Não encontrou. Quando estava indo embora topou com Konerak, e o menino de 14 anos aceitou a oferta de algumas fotografias em troca de dinheiro. Diferentemente do que mostra a série, Konerak não era do tipo vadio, que ficava vagabundeando à noite na esquina de um bairro barra pesada.

Mas um dos pontos mais surreais é mostrado quando Konerak afirma ao assassino, sentado no sofá de seu apartamento, que ele foi preso por molestar seu irmão Somsack. Tal cena foi pura invenção dos roteiristas (O que dizer do tom desafiador de Konerak?). O abuso, de fato, aconteceu três anos antes, mas Konerak jamais poderia imaginar que o homem que abusou de seu irmão era aquele homem loiro que o abordou na rua, na tarde de 27 de maio de 1991. Da mesma forma, Jeff só foi descobrir sobre o parentesco das vítimas durante a investigação policial após sua prisão. (Eu detalho essa história no meu livro).

Um memorial feito pela família de Konerak Sinthasomphone. No centro, uma fotografia de Konerak. Foto: Milwaukee Journal Sentinel.

Há outras incoerências, mas a cena segue mais ou menos verídica: a bebida batizada, as fotografias, o garoto drogado no quarto deitado ao lado de um morto, as lentes de contato amarelas, o filme O Retorno de Jedi (esses dois últimos não há provas neste caso específico, mas Dahmer usava lentes de contato amarelas e adorava o filme), o furo na cabeça da vítima com a furadeira, o processo de tentar criar um zumbi usando água quente e ácido. Quando acorda, Konerak, confuso e atordoado, foge do apartamento. Em seguida, mais fantasia fictícia: ao voltar de uma distribuidora após comprar cerveja, Jeff vê Konerak ao lado de duas jovens negras e sua vizinha na porta dos Apartamentos Oxford. Com elas há dois policiais. Na vida real, a história passou MUITO longe de acontecer assim. A ficção continua dentro do apartamento. Por exemplo, não foi Jeff quem mostrou as fotos de Konerak aos policiais, foi um deles que descobriu, pois estavam à mostra. Só aí Jeff confessou que Konerak não era seu amigo, mas seu namorado. Na série, desde o início ele fala que o garoto é seu namorado. Na vida real, os policiais, também, não foram enganados tão facilmente. Eles cogitaram levar Jeff e Konerak até a delegacia, para que Jeff, principalmente, explicasse a história ao delegado, mas no fim acabaram indo embora. A fala do policial sobre “tomar uma ducha”, uma clara referência homofóbica, é verdadeira, mas ela não foi dita a Jeff, como mostra a série. A fala preconceituosa foi realizada por um dos policiais à central, quando já estavam dentro da viatura. Nesse mesmo retorno, mas antes, o policial dá o status da ocorrência à central, e ele repete as palavras usadas no caso real (com a omissão da palavra naked — nu, em inglês). O áudio original pode ser escutado abaixo:

“36… the intoxicated asian naked male was returned to his sober boyfriend and we’re 10-8.”

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O estranho é que a série mostra em seguida o áudio original da ligação de Glenda Cleveland ao MPD. A mulher, mãe de uma das garotas que avistou Konerak caminhando nu na rua, não participou diretamente da situação, mas alertada pela filha e por uma sobrinha, entrou em contato com a polícia para saber o que havia acontecido à “criança”. Cleveland não é dramatizada na série, nem sua filha e sobrinha. Elas foram substituídas pela vizinha de Jeff e por duas garotas moradoras dos Apartamentos Oxford (na verdade, só depois eu fui descobrir que a série colocou Cleveland como a vizinha de Jeff. Nada a ver).

EPISÓDIO III — FAZER O DAHMER


Com Joyce morta, e dado que ela jamais deu a sua versão da história, temos apenas a versão de Lionel sobre os terríveis dias da família Dahmer. Nota-se claramente que a série baseou-se no livro de Lionel, A Father’s Story, para contar sobre como Jeff veio ao mundo. Isso é bem evidente no início do terceiro episódio, quando Joyce, grávida de Jeff, é mostrada se entupindo de drogas e vagando numa congelante noite rumo ao nada. Ela é encontrada pelo marido sozinha, abrigada em um tipo de parada de ônibus. Isso, de fato, aconteceu, e é relatado por Lionel em seu livro (No livro, entretanto, a história é diferente: ele a encontrou estirada no jardim de uma casa da vizinhança).

Lionel revela em seu livro que o ventre drogado de Joyce, cuja dependência por inúmeras drogas é acertadamente mostrada na série, é a chave para entender o comportamento doentio do filho. Médico nenhum jamais descobriu qual era o problema da esposa, e Lionel chega a escrever que acreditava existir algo entre ela e o pai, algum conflito ou trauma não resolvido.

Cortando para 1977, pai e filho adolescente pescam em uma lagoa antes de cortarem e limparem os peixes fisgados. Jeff fica maravilhado com as entranhas do animal. Vejo essa cena como uma referência a um episódio ocorrido na vida real, mas muito anos antes. Durante o julgamento do canibal em fevereiro de 1992, a psiquiatra Judith Becker contou uma história de como a criança Jeff ficou maravilhada certa vez ao ver seu pai abrindo um peixe. Desde muito novo, o garoto tinha uma mórbida fascinação pelas entranhas de seres vivos. Nesse caso, foi a bolsa de ovos do peixe que lhe chamou a atenção.

Achei bem interessante a cena seguinte, que mostra Jeff com uma revista masculina mostrando belas mulheres enquanto se masturba. Não tenho conhecimento que Jeff, alguma vez na vida, tenha feito algo parecido, pois desde sempre ele soube o que lhe atraía: homens. Se tal fato aconteceu ou não, nunca saberemos, mas a inserção de tal cena é interessante no sentido de mostrar que o adolescente Jeff lutava contra a sua homossexualidade, e isso, de fato, foi algo que sempre o assombrou. Durante muito tempo ele acreditou que havia algo de errado com ele, que não era certo ele gostar de homens. Achei uma boa sacada dos roteiristas: o garoto se esforçando para fazer a conexão do prazer com o sexo oposto. Ele, obviamente, não chega ao orgasmo — é atrapalhado pela gritaria de mais uma briga entre seus pais.

A seguir, um episódio bem intrigante envolvendo os Dahmer: o dia que Joyce perseguiu um disco voador. Isso, de fato, aconteceu, e Joyce até saiu em uma matéria de um jornal da região. A série, entretanto, falha mais uma vez em contar como tudo ocorreu. Na situação real, ocorrida em 1973, após ver estranhas luzes no céu e persegui-las por algum tempo, Joyce voltou para casa e convenceu Lionel a sair com ela para procurar as luzes. E assim, a família Dahmer: Joyce, Lionel, Jeff (12/13 anos na época) e o caçula David dirigiram por horas pelas estradas da região na caça do misterioso fenômeno. Mas eles não viram mais nada. Ao contrário, a série mostra uma briga entre marido e esposa devido à história do disco voador, e Jeff termina no quarto se masturbando, finalmente atingindo o clímax ao imaginar as entranhas de um peixe. Esta é uma das cenas mais interessantes de toda série, pois até hoje não existe uma explicação para um dos comportamentos mais bizarros de Jeff: ele ejaculava ao transar com as vísceras de suas vítimas. Uma tentativa de explicação foi dada pelo psiquiatra Park Dietz em seu julgamento e até já escrevi sobre isso para um post no Instagram. Essa cena dramatiza a explicação do psiquiatra.

Uma rara fotografia de Jeffrey Dahmer na adolescência, nas dependências da Revere High School. Sua maneira de socializar foi imitando pessoas com paralisia cerebral. Ele também se atirava ao chão, fingindo ataques epiléticos.

As cenas de Jeff no ensino médio imitando o decorador contratado por Joyce para dar uma mudada na casa condizem com a realidade. Apesar dessa parte de sua vida não ter sido explorada na série, existe um filme inteiro que conta apenas os anos de Jeff no ensino médio, e é interessante assisti-lo para ter um vislumbre do Jeff adolescente. Este filme pode ser visto neste link.

A dissecação do porco na aula de biologia também aconteceu na vida real, embora não quando Jeff tinha 17 anos, como é mostrado na série.

Em seguida, é dramatizado um dos momentos mais importantes e supostamente traumáticos da vida do Jeffrey Dahmer real: o abandono de sua mãe Joyce. Esse, pra mim, é um dos episódios mais nebulosos na vida da família Dahmer e cada um (Jeff, Lionel e Shari) conta uma história diferente. Nunca consegui estabelecer o que, de fato, aconteceu. O próprio Jeff forneceu relatos conflitantes. Para o psiquiatra do MPD, Kenneth Smail, ele afirmou que a saída de sua mãe foi conversada anteriormente. Já em outras ocasiões afirmou que foi pego de surpresa. De qualquer forma, me pareceu exagerada a representação desse momento na série, com Joyce saindo correndo da casa, atabalhoada, como se estivesse fugindo de um tsunami que se aproximava cada vez mais, e sendo grossa, sem educação e cruel com Jeff. Com Joyce morta, é fácil pintá-la como a mãe monstro. Ao mesmo tempo, enquanto viva, ela nunca esclareceu a sua saída às pressas de Ohio com o filho mais novo. David, que poderia dar sua versão da história, simplesmente sumiu do mapa após a prisão do irmão e até mudou o sobrenome. Até os dias de hoje vive escondido. Nem mesmo a série diz alguma coisa sobre ele. Os relatos que eu já vi de Shari relatam que ele, também, era estranho. No fim, os roteiristas tomaram a liberdade artística de contar a história conforme conveniência.

Sozinho em casa com sua mente perturbada, Jeff se entregou ao álcool e a pensamentos luxuriosos. Beber e fumar eram as únicas coisas que sabia fazer e lhe davam prazer. Ao mesmo tempo, cada vez mais ele se interessava pelo corredor bonitão que via na rua de sua casa. O garoto também se envolveu com a musculação. Aqui, existe uma falha na linha do tempo, isso porque quando a mãe de Jeff o deixou sozinho em casa, a musculação e o corredor já eram passado. A musculação ele praticou por cerca de um ano, com 15 para 16 anos, através das barras e anilhas que seu pai comprou. Já o corredor fez parte do início da adolescência de Jeff, por volta dos 13 anos, época que até planejou atacá-lo para tocar o seu corpo quente e suado. Tal plano foi mostrado na série, mas com mais falhas. De acordo com a história contada pelo Jeff real, ele se escondeu atrás de umas árvores e esperou a chegada do corredor. Mas o homem nunca passou. Jeff, então, nunca mais o viu. Já na série, Jeff é mostrado indo para o ataque. Ele chega a ficar na frente do corredor com um taco de beisebol, mas desiste de atacá-lo. O homem, assustado, dá meia volta e vai embora.

A bagunça na linha do tempo continua com Jeff frequentando as aulas no ensino médio. Ora, ele já estava graduado quando sua mãe o deixou sozinho e ruminando a própria existência doentia em casa, mas na série, após sua mãe deixá-lo, ele volta para a escola e é chamado à atenção por um professor em sala de aula por estar bebendo cerveja. Ele acaba na sala de uma mulher, que tenta aconselhá-lo. Isso não existiu na vida real. Um livro que conta muito bem essa parte de sua vida é Meu Amigo Dahmer, escrito por John Backderf, colega de classe de Dahmer no ensino médio. No livro, Backderf afirma que Jeff era invisível para os adultos da escola — professores, funcionários, direção. Ninguém nunca prestou atenção nele e se algum adulto alguma vez percebeu que ele enchia a cara de álcool, não fez absolutamente nada. Todos eram completamente indiferentes ao garoto esquisito e que bebia sem parar. Ninguém, nem mesmo seus pais, conseguiam enxergá-lo.

Em seguida, outro momento-chave da vida do assassino: o dia em que ele cometeu o seu primeiro homicídio. Jeff é mostrado parando o carro para dar carona a um jovem sem camisa que deseja ir até um show em Chippewa Lake Park. O nome do rapaz é Steven. Eles vão até a casa de Jeff, bebem e Steven insisti que tem que ir embora para assistir ao show. Na vida real, embora Jeff realmente tenha dado carona a um jovem Steven Hicks sem camisa, isso nas imediações de um shopping de Bath, e não em uma rua deserta, como é mostrado na série, Steven já havia assistido ao evento musical, ou seja, ele estava voltando para casa quando entrou no carro de Jeff. Aquele dia, um domingo, 18 de junho de 1978, era o aniversário do seu pai, então é possível que ele estivesse com pressa para chegar em casa, pois a família Hicks comemoraria o aniversário do patriarca. Na série, Steven é mostrado com pressa para chegar ao show e se encontrar com os amigos.

Steven Hicks, a primeira vítima de Jeffrey Dahmer. Hicks foi brutalmente assassinado em 18 de junho de 1978.

A dinâmica do homicídio não é totalmente esclarecida, pois Jeff deu versões conflitantes, mas a série acerta ao apresentar a mais aceita: quando Steven quis ir embora, Jeff o acertou com um peso de musculação. Steven agoniza no chão e é estrangulado. Enquanto a série mostra Jeff usando as mãos para terminar de matar Steven, na vida real, ele usou o mesmo peso, um haltere, para estrangulá-lo (usando a barra entre as anilhas). Jeff, enfim, tem o que sempre sonhou: um corpo inerte e passivo para fazer o que quiser. Mas a série não mostra ele se divertindo com o cadáver, ao contrário, Jeff é mostrado assombrado e chocado pelo que fez. De fato, tais sentimentos emergiram naquela terrível noite, mas logo passaram, então veio o êxtase e Jeff pôde executar todas as suas fantasias medonhas. A execução de tais fantasias, entretanto, não é mostrada na série. A obra é um produto de entretenimento e a censura aplicada é compreensível. Acreditem em mim, muitos não gostariam de saber o que este assassino fazia com os corpos.

Diferentemente do que a série faz parecer, Jeff não saiu na mesma noite para descartar o corpo picado de Steven. Mas a obra acerta ao mostrá-lo andando em zigue-zague numa estrada, de madrugada, e sendo parado por uma viatura policial. No banco de trás do seu carro estavam os pedaços de Steven dentro de sacos de lixo. A veracidade com o caso real termina aqui. A série mostra um dos policiais afirmando que Jeff estava bêbado, por isso dirigia perigosamente. O homem da lei não faz absolutamente nada e o deixa ir embora. Na vida real, Jeff foi parado por um policial, que chamou reforço de outro. Jeff foi tirado para fora do carro e um teste de bafômetro foi realizado. Por sorte, o rapaz não havia bebido naquele dia. O policial aplicou-lhe uma multa por direção perigosa e o deixou ir embora. Há uma história curiosíssima sobre este policial de Bath e posso contá-la em outra oportunidade.

Na cena seguinte, Jeff é mostrado descartando os órgãos internos de Hicks pela privada e pulverizando seus ossos com uma marreta. Em seus depoimentos, Jeff nunca afirmou ter descartado os órgãos de Hicks pelo vaso sanitário. A pulverização dos ossos também é inconsistente; Jeff realmente o fez, mas não como mostra a série. Tal ato foi praticado anos depois, quando ele voltou do Exército. Os ossos de Hicks estavam escondidos dentro de um saco na floresta, então ele os tirou, quebrou em pequenos pedaços e espalhou pelo quintal de sua bucólica casa. (Clique aqui e assista a um vídeo de época em que Jeffrey Dahmer se declara culpado do homicídio de Steven Hicks).

EPISÓDIO IV — A CAIXA DO BOM MENINO


O episódio inicia com a perícia trabalhando na casa de Dahmer a procura dos restos mortais de Steven Hicks, morto 13 anos antes. Na sala de interrogatório, ele confessa que após matar Steven, passou os nove anos seguintes tentando ser um “bom menino”. Isso realmente aconteceu. Assombrado pela morte de Hicks, Jeff tentou a todo custo manter sob controle seus pensamentos homicidas e desejos sexuais macabros. Lembram do manequim? Pois é, foi uma das estratégias que ele usou para manter a mente ocupada. Melhor ele se relacionando com um boneco do que com alguém vivo, pois, o vivo, ele tinha consciência que poderia machucar e, talvez, matar.

Voltando ao ensino médio, a série mostra o famoso episódio da foto do anuário, em que Jeff se infiltrou numa sessão de fotos. Seus colegas descobrem quando os livros já foram impressos e decidem borrar o rosto de Jeff. Esta é uma imagem assustadoramente simbólica da vida de Jeffrey Dahmer.

A seguir, pai e madrasta o encontram sozinho em casa e Jeff diz que sua mãe o deixou há três meses. Como eu já disse, esse episódio é tudo, menos claro. Em seu livro, Lionel diz que descobriu a fuga de Joyce em agosto, então, se Joyce foi embora de casa entre 10 e 15 de junho de 1978, isso fica longe dos três meses citados na série. No livro, também, Lionel revela que ao chegar em casa encontrou uma turma de adolescentes. Jeff estaria dando uma festa. Na série, Jeff está sozinho quando seu pai e madrasta chegam. Outro erro, e esse importante da obra, aparece na cena seguinte, quando estão em uma lanchonete e Lionel questiona o filho sobre sua bebedeira. Na verdade, nem Lionel ou Joyce sabiam do alcoolismo do filho. Jeff bebia até cair debaixo de seus narizes há anos e eles nunca suspeitaram de nada. Quem descobriu o problema do adolescente foi Shari, que contou a Lionel. O homem ficou chocado um dia que Shari o chamou em casa para ver Jeff estirado na cama, completamente bêbado. Ainda na cena da lanchonete, Jeff tenta dizer alguma coisa ao seu pai, alertá-lo de que é diferente e tem pensamentos estranhos, como se estivesse pedindo ajuda. “Acho que deveria contar a você sobre algumas fantasias”, diz ele. Definitivamente, isso não condiz com a realidade. Na vida real, pai e filho jamais se abriram um com outro, e Lionel deixa isso claro em seu livro. Jeff, em suas inúmeras entrevistas e interrogatórios, afirma a mesma coisa. Não havia conversa sobre questões íntimas e conflitos pessoais, desejos ou tentações. Jeff, especificamente, mal abria a boca, ele era um tipo prostrado, quieto e furtivo. Ele foi muito claro em suas confissões sobre como NUNCA se abriu com ninguém sobre os pensamentos que o perseguiam desde a adolescência. Vale aqui destacar o papel de Shari, que se tornou o ponto de equilíbrio e bom senso em uma casa preenchida por homens frios e amadores nas questões sentimentais e cegos para os problemas uns dos outros. Portanto, tal cena é pura invenção.

A série segue com mais inverdades e invenções. Na vida real, Jeff foi sim estudar na Universidade Estadual de Ohio, isso em setembro de 1978, mas diferentemente do que afirma a série, ele não foi expulso (apesar de ter sido investigado pela polícia do campus em um caso de furto) e também não morou sozinho no campus. Da mesma forma, a decisão dele ir para o Exército não foi feita imediatamente após ele sair da faculdade. Na vida real, seu pai, Lionel, buscou o filho na universidade após o garoto desistir, o levou para casa e lhe deu um tempo para pensar na vida. Como Jeff continuou a beber todo o tempo e se recusou a arrumar emprego, Lionel imaginou que servir o exército lhe faria bem.

Cortando um ano depois, durante uma folga do exercício militar, Jeff reaparece em casa após passar pelo treinamento básico. Lionel e Shari ficam impressionados com a mudança de visual e personalidade. Na vida real, esse tempo inicial no exército realmente lhe fez bem, pois o garoto esteve ocupado demais com suas aulas de anatomia para pensar em qualquer outra coisa. De fato, quando Jeff foi visitar pai e madrasta, estava diferente e com aspecto “vivo”, o que impressionou positivamente Lionel e Shari.

Uma das poucas imagens que mostra Jeffrey Dahmer sorrindo, ele está ao lado de seu pai e irmão mais novo, na época que serviu o exército.

Uma coisa que eu notei em Dahmer: Um Canibal Americano é que a fidelidade aos eventos reais não durava mais do que alguns segundos. Mesmo a realidade era misturada com ficção. Em uma cena de Jeff no exército, ele descobre o Halcion, droga que usaria mais tarde para dopar suas vítimas. Ela lhe é apresentada durante uma das aulas. A realidade, entretanto, é bem diferente. Em sua confissão para Pat Kennedy na noite em que foi preso, Jeff disse que descobriu o Halcion através de uma reportagem na TV, pois o presidente dos Estados Unidos, George Bush, estava fazendo uso da droga para se manter acordado e alerta durante a Guerra do Golfo. Ele conseguiu a prescrição com um médico, testou a droga em si mesmo e passou a usá-la em suas vítimas. Isso foi muitos anos depois de sua estadia no exército. Uma grande bola fora da série (Ele roubando a droga no exército, dopando recrutas, abusando deles… isso NUNCA aconteceu. A “fase” de dopar homens se iniciaria bem depois).

* * *

Após ser expulso do exército devido ao alcoolismo e passar alguns meses em Miami, Jeff foi morar com a avó, Catherine. Ela descobre o manequim e joga fora. Na vida real, foi Jeff quem jogou fora após seu pai ligar e questioná-lo sobre o boneco. Também é inverdade o acesso de raiva de Jeff com a avó. Jeff jamais demonstrou qualquer tipo de agressividade contra a sua família, principalmente às únicas pessoas que gostava no mundo: Catherine, Joyce e Lionel. Ele guardava suas frustrações e agressividade para si mesmo, descarregando-as apenas em ocasiões específicas, geralmente sozinho (quando adolescente) ou quando estava com alguma vítima (ainda assim, raras vezes).

Mas a série acerta ao mostrá-lo se masturbando em público durante uma feira em Milwaukee, isso realmente aconteceu, foi em 8 de agosto de 1982. Ele estava completamente bêbado quando cometeu tal ato exibicionista e foi liberado após pagar uma mísera multa de cinquenta dólares. Essa prisão foi mantida em segredo por Jeff. Ninguém soube, nem seu pai e nem sua avó, portanto, ele sendo demitido do emprego por isso, como mostra a série, é invenção. (Como eu já escrevi, ele nunca foi empregado em um açougue. Na verdade, nessa época, ele trabalhava no Milwaukee Plasma Inc. Isso é mostrado na série, mas eles o mostram entrando no Plasma Inc. após o episódio da feira e consequente demissão do açougue. Também, Catherine é mostrada afirmando que Lionel ficou com raiva pela prisão do filho, mas, como eu afirmei, Lionel só foi descobrir sobre a feira muitos anos depois).

Quando trabalhava no Milwaukee Blood Plasma Inc, em 1982, Dahmer conseguiu o sangue de um bonito homem de origem indígena que foi até o local para realizar exames sanguíneos. No horário do lanche, dentro da empresa, Jeff bebeu o sangue do rapaz. Ele tinha curiosidade em saber qual era o gosto, mas não gostou do sabor do sangue. Ele levou o que sobrou para a casa da sua avó e posteriormente jogou fora. “Eu tenho tido ideias estranhas desde essa época”, disse ele ao psiquiatra Park Dietz. Esse episódio é dramatizado na série, embora de forma diferente. A série omite o fato dele não ter gostado e de ter bebido dentro da empresa. É improvável, também, que ele tenha levado três bolsas de sangue para a casa da avó. De acordo com sua confissão, ele levou apenas o pouco que restou de sua ingestão no trabalho.

Pulando para 1987, Jeff está na boate Club 219, lugar onde conheceu algumas de suas vítimas. Jeff adorava a boate e na série ele é mostrado conhecendo um rapaz chamado Charles, que o convida para esticar a noite em uma sauna. Lá, os homens deitam na cama e trocam carícias. A ordem das coisas aqui está errada, pois Jeff passou a frequentar boates apenas após ser expulso de uma sauna, ou seja, ele já frequentava saunas, dopava homens e abusava de seus corpos. Só após ser expulso é que ele passou a frequentar boates em busca de homens (Sua expulsão da sauna é dramatizada na série. Na vida real, isso ocorreu em 1986).

A série também erra ao mostrar Jeff dançando na pista de dança, abraçando e se divertindo com homens. Na vida real, todas as testemunhas que se lembravam de Jeff das boates, incluindo bartenders, foram unânimes ao dizer que ele jamais se socializava. Ele ficava o tempo inteiro sentado, sozinho, observando o movimento e bebendo. Apesar dele ter conseguido várias vítimas em boates, nenhuma testemunha se lembrou de ter visto ele com alguém, e isso prova o quanto ele era furtivo. Jeff era um predador solitário, que espreitava homens sozinhos e, no final da festa, perto da hora do estabelecimento fechar, fazia o seu movimento, sem ninguém perceber. Ele não dançava. Ele não conversava. Ele não interagia. O Jeff Dahmer real é bem diferente do Jeff Dahmer mostrado na série.

No fim do episódio, Jeff conhece um rapaz na boate e o leva para um quarto de hotel. Lá, se engana e bebe a bebida batizada que fez para sua vítima e só acorda no dia seguinte. Ao acordar, Jeff percebe que o rapaz está morto. Aparentemente, Jeff o espancou durante a noite, mas não se lembra de nada. Ele compra uma mala, coloca o corpo dentro, leva para a casa da avó, em West Allis, e o esconde no porão. Quando Catherine sai no dia seguinte para ir à igreja, Jeff pega um cutelo e termina guardando a cabeça em uma caixa.

Na vida real, o homem morto por Jeff se chamava Steven Tuomi, de 25 anos. Tuomi foi abordado no bar do Club 219, mas não quando dançava, como mostra a série. Nessa época, Jeff levava seus amantes para quartos de hotel, e o fez com Tuomi, levando-o até o Ambassador. A partir do momento que os dois homens entraram no quarto, existe uma completa nuvem negra. Só temos a versão do assassino e ele não se lembrava de nada. Já foi sugerido que ele se enganou e bebeu a bebida batizada, como mostra a série, há também quem diga que, de tão bêbado, ele teve um apagão alcoólico. Jeff, também, pode ter entrado num estado de transe, como revelaria anos depois Tracy Edwards, a vítima que conseguiu escapar. O fato é que Tuomi realmente morreu espancado. Após o choque inicial pela descoberta, o assassino foi até o Grand Avenue Mall, comprou a maior mala que encontrou, esperou chegar a madrugada, colocou o corpo na mala e saiu do hotel. Diferentemente do que mostra a série, Jeff não tinha carro, e o transporte dele e da mala até a casa da sua avó foi feito por um taxista árabe, que inclusive o ajudou a colocar a mala no porta-malas. Outra inverdade é a cabeça. Jeff realmente guardou a cabeça da vítima, mas apenas o crânio.

O corpo de Tuomi ficou nove dias no porão e o frio ajudou a conservá-lo; nesse tempo, Jeff praticou necrofilia, então, o desmembrou e jogou tudo fora. Existem mais detalhes escabrosos sobre este crime, mas contarei em outro momento.

Na foto: Jeffrey Dahmer em foto tirada pela polícia após ser preso em 8 de Agosto de 1982 após abaixar sua calça para um grupo de pessoas em uma feira de Milwaukee.

Jeff Dahmer foi fichado pela polícia em 8 de agosto de 1982, após mostrar a genitália para um grupo de pessoas em uma feira de Milwaukee.

EPISÓDIO V — MÃOS SUJAS DE SANGUE


Em 1987, Jeff já trabalhava na Fábrica de Chocolates Ambrosia, e isso é citado no início do episódio. Achei interessante o diálogo entre avó e neto, quando Catherine pergunta sobre o trabalho e Jeff dá de ombros, dizendo que só “misturo chocolate”. Realmente era o que ele fazia. Jeff não tinha ambições maiores do que isso e tudo que existia fora da sua mente doente era, para ele, perda de tempo, incluindo o trabalho, que ele fazia obrigado. Em relação ao trabalho, ele sempre esteve interessado em apenas uma coisa: dinheiro. O dinheiro era importante para ele manter seu estilo de vida — comprar bebidas e sair na noite gay de Milwaukee. Existe até uma história dele respondendo a um questionário do RH da Ambrosia com essa frase. Perguntado sobre suas habilidades, foi direto: “Eu sei como misturar chocolate. Só isso”, respondeu.

Em seguida, a série mostra uma cena ridícula do seu interrogatório, com um monte de homens bisbilhotando por um vidro, se acotovelando para ter um vislumbre do alienígena de outro planeta. Na vida real, isso passou longe de acontecer. A sala do interrogatório de Dahmer no MPD era fechada, sem janela de observação. Somente dois investigadores escutaram o que Jeff tinha a contar — primeiro Pat Kennedy, depois Dennis Murphy. Kennedy e Murphy anotavam tudo que Jeff contava e repassavam a seus superiores, que lidavam com a investigação externa.

A cena do interrogatório segue com os dois policiais questionando-o. Eu li o livro de Pat Kennedy e achei incrível a forma como ele, principalmente, administrou o interrogatório. Murphy chegou depois e os dois homens logo perceberam o assassino doentio sentado diante deles. Os dois sempre agiram de forma muito cuidadosa e respeitosa, por isso, a cena do interrogador negro repreendendo Jeff por ele não saber o nome das vítimas é incorreta. (Não demorei para descobrir porque diabos a série colocou um interrogador negro, pois os interrogadores da vida real, Kennedy e Murphy, são brancos). O fato de Dahmer não saber os nomes das vítimas, porém, é verdadeira. Ele se lembrava de todos que matou, mas se referia a eles como “o caronista”, “o cara do hotel”, “o cara da cicatriz engraçada”, “o cara da livraria” etc. Em uma cena anterior, a confissão de Jeff sobre se apaixonar por um morto que viu no jornal e ir até o cemitério tentar desenterrá-lo também é verdadeira, mas isso aconteceu quando ele ainda era adolescente, em Bath. Essa história foi citada em Meu Amigo Dahmer e por Park Dietz, durante o julgamento.

Continuando o interrogatório, Jeff conta como matava suas vítimas atraindo-as até a casa da sua avó, onde as drogava, levava até o porão e as matava por estrangulamento. Isso é cem por cento verdadeiro. Mas nem todos os homens, porém, foram mortos no porão. Alguns, como Richard Guerrero, ele estrangulou em seu quarto e posteriormente desceu o corpo até o porão. Em uma boa cena, o personagem assassino é mostrado se esfregando lentamente em cima de um cadáver no porão. Dahmer gostava disso, de se esfregar, beijar, lamber, acariciar, e ficar abraçado ao morto. Ele chamou isso de “sexo light” e um psiquiatra chegou a classificar tal comportamento como uma parafilia. Um detalhe que me chamou a atenção na cena do interrogatório, e acredito que poucos tenham percebido isso, é a camisa laranja que Jeff usa, característica de pessoas presas ou condenadas. Muitas imagens clássicas do Jeffrey Dahmer real o mostram com seu famigerado uniforme prisional laranja. Obviamente, na noite em que foi preso e interrogado, ele não estava vestido com um desses, certo?

Um dos grandes problemas que Jeff teve de lidar foi com o mau cheiro de carne humana em decomposição que impregnou a casa da avó. Catherine também percebeu a movimentação estranha de homens durante à noite. Os barulhos de Jeff e sua incapacidade de lidar com o mau cheiro fizeram a mulher ligar para Lionel e pedir que ele resolvesse a situação. Ao pai, Jeff revelou ter voltado ao seu antigo hobby de coletar animais mortos para descarná-los e estudar suas entranhas. Aquilo pareceu estranho a Lionel, mas ele sabia como o filho era diferente e pediu para ele parar. Isso é mostrado na série.

Outro momento interessante da vida criminosa de Jeff Dahmer e mostrado na série é o episódio envolvendo Ronald Flowers Jr., cujo carro deu problemas numa noite e Jeff apareceu para oferecer ajuda. Aquilo realmente aconteceu, mas a situação não é contada de forma correta. Jeff não bateu no vidro como um doido oferecendo ajuda; ele só apareceu um tempo depois de Flowers perceber que a bateria do carro estava avariada; de início, Flowers não prestou atenção em Dahmer; Flowers, também, não aceitou tão facilmente a oferta de Dahmer em ir até a casa de sua avó para supostamente pegar o seu carro e voltar para fazer uma chupeta; Flowers, também, só entrou na casa após insistência de Jeff. A série acerta, entretanto, ao mostrar Flowers (na série identificado como Ron) impaciente. O homem só queria ir embora para consertar o seu carro. Ele não queria beber com Jeff ou conversar com ele. O combinado era pegar as chaves do carro e ir embora. Mas Flowers aceita o famigerado café irlandês do assassino e cai inconsciente. Desse ponto em diante é (quase) tudo fantasia cinematográfica.

No caso real, após adormecer, Flowers foi levado por Dahmer até o porão e lá o assassino abusou sexualmente da vítima. Jeff passou algum tempo se divertindo com o corpo e adormeceu abraçado a ele. De manhã, Jeff acordou e decidiu matar Flowers. Ele começou a estrangular o homem, mas o rapaz acordou e, mesmo ainda sob efeito da droga, lutou contra Dahmer. A barulheira acordou Catherine e os planos de Jeff em matar Flowers foram interrompidos. Ele vestiu o rapaz e o tirou da casa. Nesse momento, Catherine viu Jeff levando um cambaleante Flowers até um ponto de ônibus. Portanto, toda a cena mostrada na série é incorreta. Catherine não passou a noite ao lado de Flowers, muito menos discutiu com o neto. Mais uma vez, Jeff não era capaz de levantar a voz para a avó. A mulher também não ficou sentada numa parada de ônibus à espera da condução que levaria Flowers. Flowers foi estuprado durante a madrugada enquanto estava inconsciente, mas na série ele é mostrado dormindo tranquilamente em uma poltrona, sendo vigiado por Catherine.

Flowers ter investigado Dahmer, indo a saunas, também é invenção. Da mesma forma, o hospital apenas recebeu Flowers e não descobriu drogas em seu organismo, como é mostrado na série. No caso real, após sair do hospital, Flowers foi até a polícia, que o instruiu a voltar ao hospital e fazer testes em seu organismo, para comprovar sua história de ter sido drogado. Não foi encontrado nenhum vestígio de substâncias estranhas em seu corpo. Ainda assim, a polícia foi conversar com Jeff, e isso é mostrado na série, mas a investigação não foi adiante.

Em seguida, outra cena que achei interessante, e essa é uma das muitas histórias desconhecidas sobre Jeff. Andando por Walker’s Point, Ron avista Jeff e um homem negro entrando em um táxi. Aparentemente, Jeff pegou o negro na noite e o estava levando até a casa da avó. Ao ver os dois, Ron adverte o homem negro a não ir com Jeff, pois o loiro seria um homem perigoso. Com medo, o rapaz vai embora, deixando Jeff sozinho. Essa história realmente aconteceu, mas foi cerca de um ano depois de Jeff ter levado Flowers até a casa da avó. É uma história bem interessante e curiosa, que mostra uma das (várias) facetas estranhas de Jeff, e eu a conto em detalhes no meu livro.

Em 2020, pela primeira vez em mais de 30 anos, Ronald Flowers Jr. apareceu em um documentário do ID sobre Jeffrey Dahmer. Foto: Mind of a Monster.

O episódio segue com Jeff sendo preso na Ambrosia após drogar um garoto, Somsack Sinthasomphone. Diferentemente do que mostra a série, Somsack não foi drogado e abusado na casa de Catherine, mas em um apartamento de Avenues West, local para onde Dahmer se mudou em setembro de 1988. Da mesma forma, a dramatização de sua prisão na Ambrosia é equivocada. Na vida real, um investigador do MPD e um policial foram até a empresa e a direção chamou Jeff até uma sala reservada. E lá ele recebeu voz de prisão.

Há muito a se dizer sobre Somsack e o julgamento de Dahmer neste caso, mas a série não gastou mais do que alguns minutos. O que eu poderia citar como negativo na cena do tribunal é a presença de Konerak. Na época, ele era apenas uma criança e não um adolescente crescido, como é mostrado. Não posso afirmar com certeza, mas acho totalmente improvável que ele tenha ido ao julgamento do molestador de seu irmão. A série acerta, entretanto, ao dramatizar, mesmo que de forma fictícia, o tratamento positivo dispensado pelo tribunal ao réu. Tantos anos esmiuçando o caso Dahmer me convenceram de que Jeff, por sua cor da pele e aparência, sempre foi tratado de forma “especial” pelas autoridades, era como se eles continuassem lhe oferecendo carta branca para matar.

A cena da caixa que se segue também é uma curiosidade verídica, mas a situação real, mais uma vez, foi bem diferente. Sim, pai e filho brigaram pela caixa. Ela estava fechada e Lionel queria ver o que havia dentro. Na série, Jeff guarda uma cabeça fresca, da segunda vítima, preservada no formol. É a cabeça de Steven Tuomi, o rapaz morto no hotel Ambassador. Mas na história real, Jeff guardava dentro da caixa a cabeça, o escalpo e o pênis de Anthony Sears, a quinta vítima. A dinâmica da situação também foi diferente. No caso real, após discutirem, Jeff convenceu o pai que abriria a caixa no dia seguinte, e assim o fez, mostrando revistas pornográficas. A caixa, também, não era de Lionel, mas apenas um objeto que o homem descobriu no quarto do filho e quis saber o que havia dentro. Quando Jeff se negou, o pai desconfiou imediatamente. Esse entrevero ocorreu um dia antes do juiz proferir a sentença de Dahmer no caso Somsack e não depois, como mostra a série.

Após passar um ano preso, saindo apenas para trabalhar, Jeff foi libertado e seu pai descobre que o filho não teve qualquer tipo de tratamento psicológico, evidenciando mais uma vez a falha do sistema em proteger os cidadãos de indivíduos perigosos como Dahmer. Um assassino em série medonho como Jeff morou em uma instalação do estado por um ano e ninguém sequer desconfiou que ele fosse perigoso. Na vida real, Lionel descobriu isso antes de Jeff ser solto, por isso ele escreveu uma carta ao juiz do caso, praticamente implorando para que seu filho não fosse libertado. É muito provável que o juiz sequer perdeu o seu tempo lendo a carta, e Jeff foi solto para continuar sua matança.

O episódio termina com Jeff levando uma de suas vítimas, o surdo-mudo Tony Anthony Hughes até o seu apartamento nos Apartamentos Oxford.

EPISÓDIO VI — SILENCIADO


O episódio V termina com Anthony Hughes caminhando em direção à morte. Já o episódio VI inicia com sua mãe Shirley dando à luz, em 1960. Trinta e um anos depois, a série mostra um pouco da vida desta que se tornaria a vítima 12 de Jeffrey Dahmer. E aqui vem um dos maiores acertos da série. Tony realmente se comunicava através de um bloco de notas; ele também decidiu se mudar para Madison devido à violência de Milwaukee; na capital do Wisconsin, ele estudava e trabalhava; e foi quando ele viajou até Milwaukee durante um final de semana, para visitar a família, que desapareceu. Ao sair com amigos na noite de sábado, 24 de maio de 1991, Tony se engraçou com um atraente homem loiro, jovem como ele, e que bebia uma cerveja enquanto observava a multidão na boate Club 219. Este homem era Jeffrey Dahmer.

Mas se a série acerta ao mostrar detalhes da vida de Tony, erra quando parte para a dinâmica do seu homicídio. O primeiro ponto a se observar é que Jeff não se socializava com suas vítimas, então, ele sair com Tony, participar de uma sessão de fotos e lanchar em uma lanchonete é apenas invenção (Socializar com uma vítima só aconteceu uma única vez, uma vítima posterior: Jeremiah Weinberger). Na vida real, Tony foi morto na noite em que conheceu Dahmer no Club 219. Além disso, nada dele ter sido assassinado com um martelo. No julgamento do canibal, o psiquiatra Park Dietz foi claro: “O Sr. Dahmer não tentou matar Tony Hughes. O Sr. Hughes morreu em consequência dessa técnica de perfuração”. A técnica a que o psiquiatra se refere é a de “criação de zumbis”. Nesse ponto de sua vida, Jeff tentava manter suas vítimas vivas, mas completamente passivas, então planejou furar as cabeças com uma furadeira e injetar ácido ou água fervente. Na mente delirante e doentia de Jeff, dessa maneira ele poderia destruir a consciência da vítima e transformá-la em um zumbi ou escravo do amor. Foi assim que ele matou Hughes, ao tentar criar este “zumbi”, após Hughes beber uma bebida com Halcion.

Após muita invenção, a série volta a acertar ao mostrar o desespero da família Hughes pregando cartazes pela cidade e afirmando que a polícia não se interessava em investigar o caso, o que aconteceu na realidade.

Sobre a cena final, que mostra Jeff praticando canibalismo, tal comportamento realmente fez parte de seu modus operandi. Eu não sei o que ele comeu de Tony, mas é sabido que Jeff praticava o canibalismo desde a vítima 8 (Ernest Miller). A partir de Miller, Dahmer começou a comer os corações, fígados e pedaços das coxas de suas vítimas (o bíceps só foi ingerido de alguns, os mais bonitos e atléticos, como o próprio Miller). Como é mostrado na série, ele usava uma frigideira para cozinhar filés de suas vítimas.

Tony Anthony Hughes foi assassinado em 24 de maio de 1991.

EPISÓDIO VII — CASSANDRA


Após Tracy Edwards fugir do apartamento dos horrores, a vizinha de Jeff, Glenda Cleveland, vê o seu vizinho na porta e corre para dentro de seu apartamento. Minutos depois, ela vai até a porta de Jeff e observa pelo olho mágico. Em seguida, ela se desespera e grita com Jeff e os policiais, afirmando que ligou para eles inúmeras vezes. Da mesma forma, Tracy Edwards confronta um policial, perguntando se eles sabiam que o homem loiro andava matando negros no apartamento.

Sinto dizer, mas tudo aqui está errado e é pura ficção.

Para começar, Glenda Cleveland realmente existiu e é uma personagem conhecida dessa história, mas ela nunca conheceu Jeffrey Dahmer, muito menos foi sua vizinha. Ela morava em outro prédio do bairro. Na série, essa personagem foi artificialmente plantada. Fica claro que os roteiristas se basearam vagamente em Pamela Bass, moradora do apartamento 214, vizinha de frente de Jeff. Ainda assim, a personagem da série nada tem a ver com Pamela. Na vida real, Pamela morava com o marido, Vernel, que inclusive escreveu um livro. Eu li o livro e assisti/li a todas as entrevistas de Pamela, na época e para documentários. Há inconsistências nas falas de Pamela e Vernel, mas uma coisa é bem óbvia: apesar de uma ou outra discussão mais acalorada envolvendo o cheiro de carniça que emanava do apartamento 213, eles adoravam Jeff. Pamela até tentou arranjar uma namorada para ele, e Vernel costumava convidá-lo para tomar cerveja enquanto assistiam esportes. Da mesma forma, nunca li nada em meus 12 anos de pesquisa sobre Pamela ter ligado para a polícia. Os moradores do prédio reclamavam apenas com um homem: o síndico. Ninguém jamais suspeitou de crimes graves, nem mesmo a polícia, que vira e mexe visitava o prédio, pois o local era barra pesada e até cena de homicídio: um homem foi estrangulado no terceiro andar meses antes de Jeff ser finalmente preso (Mais pra frente, neste mesmo episódio, Pamela é citada por Glenda, que afirma que a vizinha também reclama do mau cheiro. Pamela, entretanto, não aparece).

Diferentemente do que afirma a série, Jeff não guardava as identidades de suas vítimas. Se fosse assim, a identificação das vítimas teria sido muito mais fácil do que foi na realidade. Ele descartava a imensa maioria dos pertences das vítimas. Ele só manteve algumas identidades, das últimas vítimas. Ele não teve tempo de jogá-las fora, pois foi capturado antes disso.

Em seguida, a série aborda a questão racial e o famigerado episódio Konerak Sinthasomphone. Há erros e acertos aqui. A série acerta ao apontar que Cleveland tentou alertar a polícia através de telefonemas várias vezes; também, a filha e sobrinha de Cleveland foram ignoradas pelos policiais brancos, que não deram ouvidos a elas, apenas ao assassino loiro e branco. Mas já sabemos que Cleveland nunca foi vizinha de Jeff e tudo envolvendo ela na série, dentro dos Apartamentos Oxford, é invenção.

Achei sensacional a série mostrar o famoso Reverendo Jesse Jackson, que realmente foi até Milwaukee após a descoberta dos crimes de Jeff. Seu personagem é simbólico: um negro influente que não tem medo de bater de frente com os poderosos brancos e conservadores, expondo como a criminalidade, mesmo a perpetuada por indivíduos raros e dementes como Dahmer, está intrinsecamente ligada a questões socioculturais. Isso é algo que eu discuto, de forma breve, em meu livro. Na vida real, ele realmente expôs na época como o tratamento policial era muito diferente entre cidadãos brancos e negros, e, também, se encontrou com Glenda Cleveland. Já o personagem Dean, mostrado a seguir, morador do 308, é fictício. As únicas pessoas que Jeff conversava no prédio eram o casal Bass e o síndico (este, apenas para lhe cobrar sobre o mau cheiro).

O Reverendo Jesse Jackson visitou Milwaukee em 1991. Nesta fotografia da época, ele aperta as mãos de pessoas na North 25th Street, perto dos Apartamentos Oxford. Foto: Tom Lynn. Milwaukee Journal Sentinel.

Em seguida, nos é apresentado o síndico nigeriano dos Apartamentos Oxford; alertado por Cleveland, o síndico, Sr. Princewill, vai até o apartamento 308 e depois fica sabendo sobre o mau cheiro. Glenda sugere ao síndico que ele despeje Jeff.

Na vida real, o síndico realmente se chamava Princewill, Soppa Princewill, mas a forma como o problema do mau cheiro é apresentado na série, mais uma vez, é inverídico. Bom, se Glenda Cleveland nunca morou nos Apartamentos Oxford e nunca conheceu Dahmer, ela nunca sentiu cheiro algum, então, tudo que envolve ela na série dentro do prédio é invenção, incluindo a sugestão de despejo e a assustadora visita de Jeff (com direito a um estranho sanduíche). Há muito a se dizer sobre o mau cheiro e os moradores conviveram com o fedor por quase um ano. Princewill é mostrado como se nada soubesse do problema. Na vida real, o síndico quase perdeu os cabelos de tanto lidar com reclamações e com o inquilino problemático do 213. Ele até chegou a ver o barril azul no quarto de Jeff. É verdade que Jeff recebeu um aviso de despejo de Princewill, mas não da forma como é mostrado na série. O aviso chegou após inúmeras tentativas frustradas de resolver o problema.

É importante, também, citar o erro da série em mostrar como Cleveland escutava os gritos de horror das vítimas através do duto de ar ou pelas paredes. Mesmo que a verdadeira Cleveland nunca tenha morado nos Apartamentos Oxford, outra vizinha poderia ter escutado os gritos das vítimas? Impossível. Um dos adjetivos que eu poderia atribuir a Jeff é o de silencioso. Em todos os aspectos de sua vida, ele simplesmente não fazia barulho. Desde criança era taciturno, invisível. E assim ele matava suas vítimas, no silêncio. Elas não gritavam porque estavam todas dopadas, dormindo. Por mais estranho que pareça, Jeff tinha horror a brigas ou conflitos, esse foi um dos motivos que o levou a dopar as vítimas. Dormindo, elas não viam a morte chegar, consequentemente não podiam gritar por socorro ou lutar pela vida. Jeff as estrangulava no silêncio da noite. Claro, uma minoria foi morta de forma diferente, mas todas estavam inconscientes ou semi-inconscientes (com exceção do primeiro, Steven Hicks).

O barulho do funcionamento de serras, entretanto, é verdadeiro, e a vizinha verdadeira de Jeff, Pamela, e seu marido Vernel, contaram certa vez sobre como eram intrigados com a barulheira. Vernel achava que Jeff estava construindo alguma coisa.

Os verdadeiros vizinhos de Jeff Dahmer, Pamela e Vernell Bass, em fotografias da época, olhando para o apartamento 213.

EPISÓDIO VIII — LIONEL


O episódio começa com um encontro fictício entre Lionel e seu filho Jeff, após a prisão do último na noite anterior. Na vida real, este encontro somente aconteceu três dias depois da prisão de Jeff, momentos antes de sua famosa primeira aparição pública. Pai e filho se encontraram numa cela do tribunal de Milwaukee. A série acerta, entretanto, em uma das falas de Jeff: “Acho que ferrei tudo desta vez, né?”. Foi exatamente o que Jeff disse a seu pai. Em O Canibal Americano, o encontro continua mais ou menos parecido com o que Lionel descreve em seu livro, exceto a parte em que Jeff comenta sobre abrir animais mortos e seu pai meio que se descontrola, afirmando que não teve influência no comportamento do filho. Eles nunca tiveram esse tipo de conversa.

Mas a série acerta ao mostrar Lionel culpando sua ex-esposa Joyce e ele mesmo pelo comportamento doentio do filho. Se Jeff herdou os genes do pai, Joyce também deu sua contribuição ao encher o ventre de drogas enquanto Jeff se desenvolvia, e tudo isso está descrito no livro que Lionel publicou em 1994. Lionel, Jeff e David, cada um à sua maneira, eram homens, digamos, diferentes. Como é citado na série, Lionel descreve em seu livro como, na adolescência, tinha sonhos em que matava uma pessoa. No livro, Lionel diz como superou sozinho sua mente estranha e solitária. Décadas depois, quando ele percebeu as mesmas características no filho Jeff, ele imaginou que o menino também seria capaz de lidar sozinho com sua personalidade diferente. Esse foi seu maior erro, apontou. Ponto a favor da série.

No instante seguinte, a série erra feio ao dramatizar a casa de Catherine sendo revirada de ponta cabeça por investigadores de polícia, que até dizem com todas as letras, e na frente da mulher de idade e doente, que o neto dela é um assassino impiedoso. Convenhamos, isso é um clichê em filmes, mas na vida real, peritos e investigadores de polícia não são tão grossos e insensíveis. Além do mais, Jeff era suspeito de homicídio e agentes da lei não saem por aí afirmando com todas as letras se alguém é ou não culpado, muito menos para a família do envolvido. Eles são investigadores, não juízes.

Na vida real, quando Lionel chegou à casa de sua mãe, realmente havia uma confusão de jornalistas acampados na rua e ele os burlou, entrando pela porta de trás da casa. Dentro, não havia nenhum policial, apenas sua mãe. Ela estava assustada com a situação, mas longe de gritar pelo neto para ele sair do quarto, como mostra a série. Lionel conta em detalhes esse momento em seu livro.

A seguir, gostei muito da dramatização do Reverendo Jackson na igreja, principalmente sua fala de que “muitas pessoas, inclusive policiais, fizeram vista grossa, por isso ele conseguiu fazer o que fez por tanto tempo”. A mais pura verdade. Em meu livro, até incluí como anexo uma fala de Jeff, em que ele descreve todas as vezes que poderia ter sido pego, mas não foi — saindo livre, seja por sua boa aparência ou por displicência das autoridades.

Na época, o caso Dahmer parou os Estados Unidos e a mídia, toda ela, por meses, não falou de outra coisa. Mas nem todos tiveram interesse em informar. A mídia televisiva, especificamente, e sua asquerosa sede por audiência (e não pela verdade) transformou o caso em um verdadeiro show de horror com direito à propagação de informações falsas e pseudojornalismo. Teve de tudo. Programas de enorme audiência da TV americana, como Geraldo e The Phil Donahue Show destruíram as reputações de Lionel e Shari com acusações absurdas que iam desde Lionel estuprando Jeff repetidas vezes quando criança a Shari sendo a madrasta dos infernos. As acusações eram ridículas e criminosas, mas o problema dos veículos de massa é que a partir do momento em que informações (nesse caso falsas) são disseminadas, o estrago não pode mais ser consertado. O caso do programa Geraldo é brevemente mostrado na série. Mais um ponto a favor de O Canibal Americano.

Na cena seguinte, Lionel, o advogado Gerald Boyle e Jeff discutem a estratégia da defesa a ser usada em seu julgamento. Lionel afirma ao filho que ele precisa ser ajudado e, sendo assim, a única alternativa é a tese de insanidade, dessa forma Jeff seria mandado para uma instituição mental e não para uma prisão comum. Boyle comenta que há um precedente no Wisconsin de um assassino como Jeff, que foi considerado insano. O nome desse arrepio no escuro é Ed Gein.

Ed Gein realmente existiu e seu caso dispensa apresentações. Eu não posso afirmar que essa conversa entre pai, filho e advogado não aconteceu, mas é extremamente improvável. Sim, Gein foi considerado insano pela lei do Wisconsin, mas isso aconteceu 30 anos antes dos crimes de Jeff e os estatutos legais que regiam a questão da insanidade já haviam sido alterados em todos os estados do país, portanto, se o mesmo Ed Gein tivesse sido julgado em 1991, certamente teria sido considerado mentalmente são e enviado para uma prisão comum. Foram épocas diferentes com leis diferentes. Pelo que eu conheço de Boyle, e abro um parêntesis aqui para afirmar que ele era o MELHOR advogado criminal de todo Wisconsin, ele não seria tão ingênuo. A conexão entre Dahmer e Gein, de fato, existe, mas essa é outra história.

Ainda nessa cena, o acerto da série reside em dois pontos: [1] Lionel realmente acreditava que o filho era doente e precisava ser ajudado, assim, o melhor para ele e para a sociedade, que poderia estudá-lo, era enviá-lo para uma instituição mental pelo resto da vida; [2] o advogado e a família Dahmer concordaram que a melhor estratégia no tribunal era a alegação de insanidade.

O advogado Gerald Boyle olha para o seu cliente, o assassino em série Jeffrey Dahmer, durante audiência preliminar do caso. Data: setembro de 1991.

Em meu livro, eu dedico dois capítulos inteiros apenas para descrever e analisar o julgamento de Jeffrey Dahmer — mais de 100 páginas. Vou confessar algo. Para pessoas como eu, mentalmente inquietas e insatisfeitas pela falta de respostas em relação aos mistérios da mente humana, o julgamento de Jeffrey Dahmer foi uma das coisas mais sensacionais que eu já vi. Eu não fiquei satisfeito com o final, mas admito que foi incrível ver a batalha travada no tribunal pelo advogado de Jeff. Há tudo a se dizer sobre o julgamento, mas este não é o momento. Em relação à série, foi desapontador ver que os roteiristas reduziram este histórico evento a alguns minutos, e ainda inventaram situações, como a presença de Joyce e sua briga com Lionel.

Na vida real, após a prisão do filho, Joyce, que morava na Califórnia, desapareceu. Antes de julgá-la e rotulá-la de qualquer coisa, é bom relembrar que Joyce era uma mulher mentalmente doente, assombrada por demônios. Anos depois, ela deu uma entrevista e afirmou que a notícia da prisão de Jeff e tudo o que se comentava sobre ele a fez perder o chão, ela passou meses acamada na depressão e com pensamentos de autoaniquilação. Foi nessa época que ela começou a escrever um bilhete suicida. Ela permaneceu longe de Jeff, portanto, Joyce sendo mostrada na série assistindo ao julgamento do filho é invenção. Lionel e Shari foram os únicos familiares de Jeff a mostrar apoio durante todo o processo. Consequentemente, a briga entre Joyce e Lionel nunca existiu. É bom reforçar que produtos televisivos ou cinematográficos baseados em fatos reais nem mesmo são fiéis aos personagens que existiram na realidade. Definitivamente, Lionel não era do tipo que faria um escândalo em público. Controlado, frio e sentimentalmente mais fechado do que uma porta com uma dezena de trancas, ele jamais perderia o controle da maneira mostrada na série. Ele sempre foi um homem terrivelmente fechado, discreto, reservado e que fugiu de brigas. Em seu livro, ele até afirma que o seu maior medo na vida era o de ser exposto, por isso viveu a vida inteira nas sombras. Mas isso mudou quando seu filho ficou famoso e o nome Dahmer foi exposto para todo o planeta.

Lionel Dahmer conversa com sua esposa Shari durante o primeiro dia de julgamento de seu filho Jeffrey Dahmer. Foto: Jim Gehrz. Milwaukee Journal Sentinel.

Se Joyce nunca pisou em Milwaukee durante o julgamento do filho, a cena em que ela vai até a casa da família Straughter, cujo filho Curtis, foi uma das vítimas de Jeff, também é invenção. A cena é bem ridícula, na verdade, pois Joyce pede para que eles digam alguma coisa boa sobre Jeff, de forma que o juiz pudesse considerar o envio do réu para uma instituição psiquiátrica. Ora bolas, a essa altura do campeonato, no caso real, Jeff já havia sido considerado culpado e aguardava apenas a sentença. Todos já sabiam que ele seria enviado a uma prisão comum. As falas dos familiares eram apenas um protocolo a seguir e ocorreram minutos antes do juiz proferir a sentença. O destino do réu já estava decidido.

Durante as declarações de impacto, a série repetiu exatamente as declarações dos parentes reais (embora bem resumidas), então, o que você assiste na tela, é o que aconteceu na realidade. Destaque para a atriz que interpreta Rita Isbell, irmã mais velha de Errol Lindsey, e para Shirley Hughes. A cena original de Hughes é extremamente tocante, principalmente ao final, quando ela faz o sinal ‘eu te amo’ na linguagem de sinais. Já o descontrole de Isbell é compreensível e, como curiosidade, uma das coisas que ela diz é: “é assim que você age quando está fora de controle”. Claramente, ela se referia a um ponto de imensa discussão durante o julgamento: o réu tinha ou não tinha o controle de suas ações?

Quando Jeff é autorizado a dar sua declaração, ele se levanta e olha para Cleveland na plateia. Há vídeos desse momento na Internet e todos podem verificar que ele, de sua cadeira até o local de sua fala, caminha de cabeça baixa. Ele nunca olha para a plateia. Na verdade, durante todo o julgamento, ele jamais olhou. Mas quando ele começa a falar, as palavras são exatamente as mesmas ditas pelo Dahmer real. A série, entretanto, não mostra o discurso inteiro, que na manhã de 17 de fevereiro de 1992 durou cinco minutos.

Ao final do episódio, Joyce é mostrada tentando o suicídio enquanto Lionel escreve o seu livro. Há uma inconsistência aqui. O livro de Lionel já estava lançado quando Joyce tentou se matar com gás. Isso foi em 1994. O episódio termina com os policiais John Balcerzak e Joseph Gabrish sendo reintegrados à força policial após receberem uma advertência. Na vida real, eles foram demitidos, e vocês podem assistir a uma reportagem de época sobre isso neste link. Balcerzak e Gabrish foram demitidos, mas isso não é o final da história. Anos depois os dois foram reintegrados após decisão judicial e se aposentaram na polícia. Balcerzak até ganhou uma homenagem no Twitter do MPD. Após repercussão negativa, o tuíte foi apagado.

Os policiais John Balcerzak e Joseph Gabrish fotografados em 1992. Eles foram demitidos da polícia devido ao episódio Konerak Sinthasomphone, mas reintegrados posteriormente após decisão judicial. Foto: Milwaukee Journal Sentinel.

EPISÓDIO XIX — BICHO-PAPÃO


Molestador de crianças, assassino de negros, branco, bonitinho e famosinho. Nem preciso dizer que Dahmer chegou na prisão com um X marcado nas costas. Quem o matasse faria um favor à sociedade de Milwaukee, que ansiava pelo olho por olho, dente por dente, e ficaria eternamente famoso. Portanto, candidatos a enviá-lo para o inferno não faltavam. E é por isso que a primeira cena do episódio nunca existiu. Desde o início, Jeff foi segregado dos outros presos, andava na companhia de dois guardas brutamontes e tinha seus passos monitorados. Mostrá-lo junto a outros detentos, mesmo que todos fossem recém-chegados, não condiz com a realidade (E isso também vale para a cena do refeitório). Jeff, de fato, era um detento especial. Mas por pouco tempo.

Sozinho em sua cela, Jeff é mostrado lendo a carta de uma “fã”, que também lhe envia cinco dólares. Ele a responde desenhando uma mão decepada. Para alguns pode soar bizarro um assassino em série como Jeff ter uma “fã”, mas este fenômeno é conhecido na criminologia e eu até já escrevi um post sobre isso aqui no site e uma série no Instagram. Preciso dizer que Jeff, por sua aparência e notoriedade, teve milhares de fãs? Com certeza sim, e até hoje! Mas, na época, ele recebeu milhares de cartas e, por mais incrível que isso soe, ele nunca ganhou tanto dinheiro. É verdade! Ele recebia muito dinheiro de fãs, assim como a fictícia Alice da série, que lhe enviou cinco dólares.

E com a grana ele comprou muita coisa, incluindo as fitas cassetes de música clássica e sons de baleia jubarte, como é mostrado na série. Mas eu não tenho conhecimento de Jeff tendo problemas ao escutar a música, acredito que isto é invenção. Já o processo movido pelas famílias das vítimas após Lionel lançar seu livro é real. Aproveito para dizer que Lionel e Shari quase foram à falência financeira após os crimes de Jeff. Eram processos vindos de todos os lados e só piorou com o livro.

Também é verdade Cleveland sendo premiada pela prefeitura da cidade, eleita cidadã modelo, assim como é verdade que os moradores dos Apartamentos Oxford começaram a dormir juntos pelos corredores. Isso aconteceu nas semanas seguintes à descoberta dos crimes. Eles estavam assustados.

Não há dúvidas de que até os dias de hoje existe um abismo no tratamento por parte das autoridades, e da sociedade em geral, entre pessoas negras e brancas. Sabemos do racismo que permeia toda a estrutura da sociedade, mas a série forçou a barra ao mostrar Sandra Smith sendo rispidamente presa por quebrar a máquina fotográfica de um homem branco. Eu desconheço tal episódio e até fiz novas pesquisas para tentar saber se isso realmente ocorreu na vida real. Não encontrei nada. Uma matéria recente do maior jornal de Milwaukee também desmente a história. Portanto, é outra invenção.

* * *

Em 1996, os objetos pessoais de Dahmer foram todos destruídos em um aterro sanitário por um compactador pé-de-carneiro. Quem comprou os objetos foi um rico empresário do ramo imobiliário da cidade de Milwaukee, chamado Joseph Zilber. Esse episódio foi rapidamente mostrado na série. Uma reportagem sobre esse dia pode ser vista neste link. Como bem mostrado na série, Zilber comprou os objetos em um “leilão” e o dinheiro arrecadado foi dividido igualmente entre os familiares de 11 vítimas, cujos restos mortais foram encontrados no apartamento 213.

Nas cenas seguintes, a série acertadamente mostra a demolição dos Apartamentos Oxford, que começou em 16 de novembro de 1992, e o ataque sofrido por Jeff na capela da prisão, perpetuado pelo prisioneiro Osvaldo “Bobby” Durruthy em 3 de julho de 1994. A série, entretanto, exagera o ferimento sofrido por Jeff. Na realidade, o assassino em série mal teve o pescoço arranhado, pois a navalha do agressor caiu antes de chegar em seu pescoço.

EPISÓDIO X — DEUS NO PERDÃO, DEUS NA VINGANÇA


O último episódio de O Canibal Americano começa em Chicago, Illinois, 1977, mostrando o assustador palhaço assassino John Wayne Gacy atraindo e atacando uma vítima em sua casa. Dezessete anos depois, em 1994, Gacy foi executado com uma injeção letal. A série mostra Dahmer em meio à população geral pregando peças nos outros presos e fazendo piadinhas doentias. Logo, o detento Christopher Scarver aborda Dahmer no refeitório e lhe envia um recado nada amigável na frente de todo mundo. Na vida real isso não aconteceu. Mais de dois anos após ser enviado para a Columbia Correctional Institution, em Portage, Jeff ainda vivia segregado da população geral do presídio. Não que ele vivesse ou andasse sozinho na prisão, mas ele não se misturava da forma como é mostrado na série. Da mesma forma, Scarver nunca abordou Dahmer. A única vez que isso aconteceu foi no dia em que ele matou Jeff. Scarver planejou e executou seu plano no silêncio de sua loucura. Nota-se que a série assumiu as palavras de Scarver, que falou à mídia em 2015, sobre os motivos que o levaram a matar o mais famoso detento do Wisconsin. Em uma entrevista para o The New York Post, Scarver disse ter matado Dahmer por estar enojado do comportamento do assassino em série, além dele supostamente não ter mostrado que se arrependeu de seus crimes. Isso é mostrado na série, na fictícia cena do refeitório.

Na cena seguinte, Scarver dá detalhes a uma funcionária do presídio sobre o que alimenta a sua doença mental, e isso está correto, pelo menos é o que o verdadeiro Scarver pensava. Mas é bom dizer que o autoconhecimento de Scarver veio com o tempo. Em 1994, sua mente estava voltada apenas para um único objetivo: matar Jeff Dahmer. Outro equívoco da série é mostrar ele pesquisando sobre Jeff nos computadores da biblioteca. Isso não foi revelado no relatório final que investigou os homicídios de Jeff Dahmer e Jesse Anderson (os dois homens mortos por Scarver).

Um erro da série é mostrar Jeff Dahmer sendo influenciado no caminho da religião por John Wayne Gacy. Ele assiste a uma entrevista do assassino e decide procurar o capelão da prisão em busca de aconselhamento. Na vida real, a religiosidade de Jeff estava adormecida desde os tempos em que morou com a avó. Logo após ser preso em 22 de julho de 1991, ele começou a ler livros enviados por seu pai e a se debruçar sobre a bíblia e o cristianismo. Isso continuou nos anos seguintes e Jeff se correspondeu com várias pessoas religiosas que lhe enviavam mais e mais material religioso. Seu pai, também, estava sempre lhe enviando cartas, escrevendo sobre o próprio despertar espiritual e de como era importante para o filho se apegar ao Criador, não apenas para encontrar a sua própria paz interior, mas também para ser aceito no reino dos céus quando sua hora chegasse. Foi nesse ambiente que em março de 1994, Dahmer procurou ajuda para ser batizado. Nesse sentido, é correto quando a série mostra Jeff dizendo a Lionel que não havia pia batismal na prisão. Ele precisou de ajuda externa.

Achei interessante a cena do eclipse total do Sol. Isso, de fato, ocorreu em 10 de maio de 1994. Dia do batismo de Jeff Dahmer pelo ministro Roy Ratcliff e da execução de John Wayne Gacy. Há 11 anos escrevi sobre isso no texto sobre Dahmer, afirmando que: “Para muitos, o eclipse solar anular pareceu totalmente apropriado, se não totalmente sobrenatural. Outros consideraram esse evento uma condenação celestial”. A execução de um assassino medonho, o batismo de outro e a Lua tapando completamente a Luz que nos dá vida. Alguém acredita em coincidências? (Como curiosidade, John Wayne Gacy não morreu tão pacificamente como é mostrado na série).

Os medonhos assassinos em série Jeffrey Dahmer e John Wayne Gacy tiveram eventos distintos em 10 de maio de 1994. Enquanto o primeiro era batizado, o segundo morreu em agonia após sua execução por injeção letal falhar.

Jeff Dahmer foi assassinado na prisão na manhã de 28 de novembro de 1994 pelo detento Christopher Scarver. Embora o grosso mostrado na série esteja correto — três homens foram escalados para limparem o banheiro do ginásio de esportes; eles foram deixados sozinhos pelos guardas; dois deles foram encontrados mortos —, o resto é invenção, incluindo o diálogo entre Dahmer e Scarver. Na vida real, eram dois guardas vigiando os três presos. Os dois guardas, negligentes, deixaram suas posições e Scarver sentiu-se encorajado a fazer justiça com as próprias mãos. A investigação apontou que ele assassinou primeiramente Dahmer, que foi pego de surpresa por seu algoz, que carregava uma barra de ferro, pega da sala de musculação. Ensandecido, Scarver destruiu a cabeça de Dahmer. Não haviam ferimentos de defesa, o que indica a possibilidade de Jeff não ter reagido ou ter sido pego de surpresa.

Tranquilamente, Scarver caminhou mais alguns metros em direção a Anderson, que aparentemente estava alheio a tudo o que estava acontecendo. Jesse provavelmente nem viu de onde veio o golpe. Scarver o golpeou várias vezes na cabeça até sentir que o trabalho encomendado por Deus estava feito. Diferentemente de Dahmer, que morreu quase que instantaneamente, Jesse sofreu mais e só veio a óbito dias depois.

A cena do necrotério é real e Lionel a descreve em seu livro, afirmando o quão difícil foi ver seu filho morto. A batalha pelo destino do cérebro de Jeff também ocorreu, com Joyce querendo doá-lo para estudos enquanto Lionel desejava cremá-lo, assim como foi feito com o corpo. Como afirma a série, o cérebro permaneceu na escola de medicina da Universidade do Wisconsin enquanto a questão era decidida na justiça. Eventualmente, o juiz fez valer o desejo de Jeff, que expressou em vida o desejo de ser cremado, e ordenou a cremação do cérebro. Na série, achei oportuna a fala do juiz: “É uma verdade incômoda: nunca se saberá por que ele fez o que fez”. Nunca é uma palavra forte e perigosa. Acredito piamente no Nunca para a nossa geração, mas não no Nunca para as gerações futuras, que aprenderão com as anteriores, ano a ano, década a década, século a século, até o momento em que nós conseguiremos explicar, sem margem para erro, a existência não apenas de Jeffrey Dahmer, mas de outros como ele.

A série termina com a confirmação de que um memorial nunca foi construído para as vítimas. Até os dias de hoje, o lote onde uma vez existiu os Apartamentos Oxford continua baldio.

Imagem final da série Dahmer: O Canibal Americano mostra as vítimas de Jeffrey Dahmer. Foto: Netflix.

Para concluir, Dahmer: O Canibal Americano é construída sob uma infraestrutura fiel à história real, mas existem coisas demais que desviam completamente da realidade. Minha opinião é que, como entretenimento, é apenas mais uma série regular a dramatizar a história de um famoso assassino da vida real. Para aqueles que desejam mergulhar no caso real e tem apreço pelo que, de fato, aconteceu, a série não deve ser levada a sério, principalmente no que tange à representação das personalidades dos Dahmer’s: Jeff, Lionel, Joyce, Catherine e Shari — mulher de personalidade forte e de suma importância na vida dos homens Dahmer’s, Shari é apenas uma coadjuvante sem graça e sem papel definido na série.

** Daniel Cruz, editor e fundador do OAV Crime, é autor de JEFF, na trilha da loucura, livro disponível na pré-venda.

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Por:


Daniel Cruz
Texto

Lúcia Almeida
Revisão

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