Reportagem Retrô é uma coluna do blog O Aprendiz Verde que traz reportagens, matérias e artigos antigos publicados em algum lugar do nosso tempo-espaço. Trazer essas matérias é uma forma de resgatarmos o passado e, por um instante, ter um vislumbre daquele registro de época.
A reportagem retrô de hoje foi publicada na revista Veja , em 18 de Setembro de 1996, e fala sobre a cultura da pistolagem no Nordeste.
Vida Cotidiana – Matadores de Aluguel
Por Silvania Dal Bosco | Publicado na Revista Veja em 18 de Setembro de 1996
Há uma conta assustadora na vida do pernambucano Mário Pereira de Almeida. Aos 25 anos, ele já matou 20 pessoas, média de uma a cada seis meses desde que puxou o gatilho pela primeira vez, aos 15, por vingança. As primeiras vítimas foram três rapazes que estupraram e assassinaram sua namorada, Adriana, de 16 anos. “Quando atirei no primeiro, cheguei a me perguntar se aquilo estava certo”, conta Pereira. “Com os outros foi diferente. Coloquei um pneu na cintura de cada um, despejei 1 litro de gasolina na cabeça, toquei fogo e fiquei olhando. Eles mereciam.” Condenado a nove anos de cadeia por uma dessas mortes, Pereira está preso na Penitenciária Anibal Bruno, no Recife, onde é conhecido como “Mário Ninja”. Antes de ser preso, matava por encomenda. Era assassino de aluguel. “Se me mandarem derrubar um sujeito, eu não vou perguntar se ele é bom ou ruim”, explica o pistoleiro, um tipo franzino de 1,65 metro de altura, pouco mais de 60 quilos.
“Isso é um trabalho. Eu tenho é de ser competente.”
Matadores de aluguel são personagens familiares na cena nordestina quanto vaqueiros e repentistas. A polícia calcula que existam cerca de 200 só em Pernambuco. A maioria atua nas regiões do agreste e do sertão, principalmente nas cidades de Garanhuns, Caruaru, Floresta e Serra Talhada. Muitos trabalham como empregados de fazenda nos arredores de Garanhuns ou como motoristas de políticos e empresários da região. Podem ser encontrados em locais facilmente identificáveis e têm tabelas de preço que variam de acordo com o status social da vítima. “O matador é uma arma pronta para funcionar e o gatilho é o dinheiro”, diz o delegado de Homicídios de Pernambuco, Djalma Raposo, que teve seu pai, um procurador de Justiça, assassinado por um pistoleiro de aluguel na cidade de Goiana, no interior de Pernambuco, em 1973. O assassino foi preso, mas os mandantes continuam soltos até hoje.
Primeiro serviço – O que impressiona nesses pistoleiros é a frieza com que descrevem os crimes que cometeram. Jairo Moraes de Almeida, 22 anos, começou a matar aos 14, já como assassino profissional. Ele conta:
“Eu morava perto da Praça do Brás, onde se reúnem os matadores de Garanhuns. Ouvia suas histórias e ficava me preparando para o dia em que também iria matar alguém. Meu sonho era ser um matador respeitado, melhor do que aqueles que eu conhecia. Aprendi a atirar com um revólver .38 da minha tia e logo percebi que tinha jeito para a coisa. Aos 14 anos, fui contratado para matar um homossexual. Fiquei conversando com ele e o convidei para dar uma volta. Quando cheguei atrás de uma oficina, puxei o gatilho, dei dois tiros e ele ficou estirado. Não senti nenhum remorso. Fiquei feliz porque tinha conseguido fazer bem o meu primeiro serviço.”
Jairo está preso na Ilha de Itamaracá, próxima ao Recife, onde cumpre pena de 118 anos por nove dos 30 crimes que cometeu. É uma pessoa bem articulada e fala corretamente. Estudou até o primeiro ano do segundo grau, é bonito, tem músculos bem torneados, usa um corte de cabelo moderno e, mesmo no presídio, está sempre impecavelmente vestido com roupas de grife. “Quando a gente encara a morte como uma profissão, a única preocupação é fazer o serviço bem-feito para ser respeitado”, diz, com olhar frio e voz tranquila. Arrependimento? Nenhum.
“Rezo todas as noites. Um dia eu vi que estava numa situação difícil. Se eu desse o menor passo em falso, seria morte. Rezei antes de agir e consegui matar o sujeito. Acho que foi Deus quem permitiu. Essas coisas não têm explicação.”
Hora e sangue – Mortes por encomenda são uma tradição antiga no Nordeste, região onde a honra muitas vezes se lava com sangue, desavenças políticas são resolvidas a bala e ainda se diz que homem que é homem não leva desaforo para casa. Em 1993, o ex-governador da Paraíba e atual senador Ronaldo Cunha Lima tornou-se o pistoleiro mais famoso da política brasileira ao acertar um tiro na boca do seu adversário político Tarcisio Burity. “Isso está na alma nordestina”, afirma o ex-deputado Ricardo Fiúza.
“Se alguém resolve bater na minha mulher, eu mato ou mando matar. E olhe que eu me considero um sujeito civilizado. Viajei pelo mundo todo e li mais do que a maioria das pessoas que se consideram informadas.”
Para contratar um matador, o mais comum é procurar um “contato” ou o “cruzeiro”, como são chamados os agentes da morte. O preço de uma vida varia de acordo com a dificuldade de realizar a tarefa. A morte de uma pessoa comum e desconhecida como um agricultor ou uma mulher acusada de trair o marido, custa quase nada – entre 500 e 1.000 reais, segundo informações dos próprios pistoleiros. Se a vítima for um prefeito, vice-prefeito, padre, deputado ou empresário conhecido, o valor aumenta. Pode chegar a 15 mil reais. Depois de combinado o preço, o matador recebe uma arma, na qual depois dá sumiço, e metade do dinheiro adiantado. O próximo passo é levantar a rotina da vítima.
“Se a gente não conhece a pessoa, recebe uma fotografia ou então alguém se encarrega de mostrar quem é o cabra.”
[Jairo Moraes]
Faxina cearense – “Depois que se mata o primeiro, é tudo igual”, conta Marco Aurélio Domingues, 31 anos, acusado de assassinar 20 pessoas. Filho de um coronel do Exército, Domingues cresceu brincando com armas e acompanhando o pai em caçadas. Natural de Camaragibe, região metropolitana do Recife, aos 15 anos já ia para o colégio armado com um revólver calibre .38. Nessa época, fez sua primeira vítima – “um grandalhão que mandava e desmandava no bairro”, conta. Aos 19, conseguiu emprego na Polícia Militar, mas continuou a aceitar encomendas por morte “por fora”, como diz.
“O salário era muito baixo. Eu sempre gostei de me vestir bem e levar a minhas namoradas para bons restaurantes. A solução era cobrar por coisas que eu já fazia de graça na polícia.”
Marco Aurélio está preso na Penitenciária Barreto Campello, próxima ao Recife, onde cumpre pena por quatro das mortes que confessou.
“Ninguém entra nesse mundo impunemente. Tenho certeza de que só matei gente ruim. Sou violento, mas sou prestativo. Se o sujeito é bom eu ajudo, se for ruim eu mato. A lei pode até dizer que eu cometi crimes, mas o que fiz foi limpar a cidade.”
A cultura da pistolagem sobrevive no Nordeste graças à impunidade dos bandidos e ao silêncio cúmplice da população. São poucos os matadores de aluguel presos e condenados pela Justiça. Em Garanhuns, cidade de 100 mil habitantes, foram cometidos 127 homicídios nos últimos oito meses – a maioria deles por encomenda. Todos os dias, por volta das 7h da noite, um grupo de pistoleiros reúne-se em um bar no centro da cidade chamado Bandejão. É ali que são contratados para matar. As autoridades sabem seus nomes e endereços, mas ninguém toma iniciativa alguma para prendê-los. “Até o cidadão comum sabe quem é o pistoleiro e, muitas vezes, o mandante, mas aqui impera a lei do silêncio. Ninguém sabe nada, ninguém viu nada e todo mundo cala”, diz o promotor Jurandir Bezerra de Vasconcelos. “A pior coisa é fazer um inquérito contra um matador. Não existe a arma do crime e não existem testemunhas”, justifica-se o delegado de Garanhuns, Paulo Clemente.
No período em que governou o Ceará pela primeira vez, entre 1986 e 1990, o atual governador Tasso Jereissati, ordenou uma faxina nos matadores de aluguel do Estado. Foram presos 62 pistoleiros e 20 mandantes – entre eles empresários, políticos, fazendeiros e usineiros. Entre os presos estava o maior pistoleiro do Nordeste na época, Ildefonso Maria da Cunha, o “Mainha” [foto], acusado de mais de 60 mortes. Atualmente, ele cumpre pena no Instituto Penal Paulo Serasate, a 35 quilômetros de Fortaleza, por 35 desses crimes. “A pistolagem estava tão disseminada no interior do Nordeste que os garotos tinham como objetivo ser um matador de aluguel”, lembra Moroni Torgan, secretário de Segurança Pública entre 1988 e 1990 e o atual vice-governador do Estado.
“É preciso prender o pistoleiro e mostrar à população. Só eliminar não funciona porque o mito continua. É o mito que faz a próxima geração de matadores”.
Nota do Aprendiz: “Mainha”, suspeito de ter assassinado mais de 80 pessoas, foi encontrado morto no dia 4 de janeiro de 2011, no município de Maranguape, Região Metropolitana de Fortaleza. No corpo dele, foram encontradas nove perfurações à bala. Após 20 anos desta reportagem da Veja, a pistolagem continua em alta nos estados do Nordeste, como atesta esta matéria de 2008 do Bom Dia Brasil, que afirma que em poucos meses do ano mais de 200 pessoas foram mortas por matadores de aluguel. O mais recente Mapa da Violência, mostra que as capitais nordestinas são as campeãs em mortes por armas de fogo, com grande parte desses crimes não sendo solucionados, muitos decorrentes de encomenda.
Universo DarkSide – os melhores livros sobre serial killers e psicopatas
Curta O Aprendiz Verde No Facebook