As cartas de Ted: Kaczynski e seus advogados

A famosa advogada Judy Clarke tornou-se amiga de Ted Kaczynski, o Unabomber, enquanto tentava impedir sua execução. Ela conseguiu — e ele a odeia por isso.
Ted Kackzynski sendo escoltado para fora do tribunal em 21 de junho de 1996.

Ted Kackzynski sendo escoltado para fora do tribunal em 21 de junho de 1996.

De sua cela na prisão, Ted Kaczynski – o Unabomber, que aterrorizou os Estados Unidos na década de 1980 e início de 1990, manteve notáveis correspondências com milhares de pessoas ao redor do mundo. Com a proximidade do vigésimo aniversário de sua prisão, o OAV Crime reproduzirá uma série de artigos publicados pelo Yahoo! News com base em suas cartas e outros textos, armazenados em um arquivo da Universidade de Michigan. Eles lançam uma luz sem precedentes sobre a mente de Kaczynski — gênio, louco e assassino.

Muito antes de se tornar notícia por seus esforços para salvar Dzhokhar Tsarnaev da pena de morte [ele foi acusado de ser um dos responsáveis pelo atentado a bomba durante a Maratona de Boston], a advogada Judy Clarke teve um cliente igualmente famoso: Ted Kaczynski, o Unabomber. E sua estratégia em ambos os casos foi semelhante: confrontada com evidências esmagadoras de que ambos eram culpados por crimes terríveis, ela buscou detalhes e impressões a respeito de suas vidas que podiam levar os jurados a vê-los apenas como humanos o bastante para livrá-los da morte.

Para fazer isso por Kaczynski, contudo, ela sentiu que precisava compreender os motivos por trás da série de atentados terroristas que deixou três mortos e mais de duas dúzias de feridos e que quase derrubou um avião. No fim de 1996, enquanto aguardava julgamento em Sacramento, Califórnia, Kaczynski pegou um lápis e um caderno amarelo e começou uma carta para Clarke:

“Judy… você perguntou como alguém como eu, que parece ser sensível aos sentimentos dos outros e não perverso ou predatório, pôde ter feito o que eu fiz”, escreveu ele na carta que classificou como “MUITO SENSÍVEL”. 

“Provavelmente a maior razão para você achar minhas ações incompreensíveis é que você jamais experimentou ódio e frustração intensos o suficiente, durante um longo período de tempo. Você não sabe como é carregar um fardo imenso ou raiva frustrada, e como isso pode tornar alguém rancoroso”.

Para Kaczynski, não havia “inconsistência entre crueldade” com pessoas que ele considerava responsáveis por seu ódio e “gentileza” com outras, ele escreveu. Na verdade, argumentou, “ter inimigos aumenta os sentimentos de bondade de alguém para com aqueles que considera amigos ou companheiros de sofrimento”.

Mas — numa confissão que ele aparenta jamais ter feito a qualquer outra pessoa — Kaczynski admitiu que algumas vezes se sentiu confuso a respeito do que fez. Os seus atentados mortais seriam justificáveis? “Definitivamente sim”, disse ele a Clarke — dependendo do seu humor na época e se ele acreditava que estava “vencendo ou perdendo” sua cruzada contra os efeitos desumanizadores da tecnologia moderna.

No outono anterior, Kaczynski havia conquistado o que considerou uma importante vitória. Sob a ameaça de mais violência, o The New York Times e o The Washington Post publicaram o manifesto antitecnologia de 35 mil palavras que havia sido o trabalho de sua vida (a aparência do manifesto levou à sua prisão, quando seu irmão David percebeu que o linguajar do Unabomber e suas ideias refletiam cartas que recebera de seu irmão anos antes). Mas, como Kaczynski contou a Clarke, ele não sentiu a satisfação que esperava. “Quando eu sinto que estou vencendo… eu começo a sentir pena dos meus adversários, e então tenho sentimentos confusos a respeito do que fiz”, escreveu.

A edição de 19 de setembro de 1995 do The Washington Post contendo o Manifesto Unabomber. A pedido da Procuradora Geral Janet Reno e do FBI, o jornal publicou o texto de 35 mil palavras de Ted Kaczynski, na esperança de interromper 17 anos de pacotes-bomba. (foto: Evan Agostini/Liaison via Getty Images)

A edição de 19 de setembro de 1995 do The Washington Post contendo o Manifesto Unabomber. A pedido da Procuradora Geral Janet Reno e do FBI, o jornal publicou o texto de 35 mil palavras de Ted Kaczynski, na esperança de interromper 17 anos de atentados a bomba (foto: Evan Agostini/Liaison via Getty Images).

A carta nos dá uma ideia do quanto Kaczynski gostava e confiava em Clarke. Apesar de acabar se declarando culpado no começo de seu julgamento em 1998, recebendo oito sentenças consecutivas de prisão perpétua, por anos ele se recusou a admitir ou explicar suas ações para qualquer pessoa. Em sua carta, ele escreveu que não esperava que ela concordasse que os crimes que havia cometido como Unabomber eram justificáveis, mas queria oferecer uma explicação assim mesmo. “Não te culpo por se sentir incomodada pelo que fiz”, escreveu Kaczynski a Clarke. “Na verdade, eu te respeito ainda mais por ter trazido esta questão complicada, mesmo que eu fique desconfortável em tentar respondê-la”.

O Unabomber era apenas o segundo caso de repercussão na carreira de Clarke (o primeiro foi o de Susan Smith, uma mulher da Carolina do Sul que foi acusada de afogar propositalmente seus dois filhos pequenos). Os papéis de Kaczynski, enchendo 90 caixas no arquivo da Universidade de Michigan, oferecem algumas ideias sobre como a famosa advogada, que notoriamente se recusava a falar com repórteres (e não quis comentar esta matéria), fez seu trabalho.

Designada para o caso no verão de 1996, alguns meses após Kaczynski ter sido preso em sua isolada cabana em Montana, Clarke logo se tornou uma das pessoas favoritas de Ted. Em cartas para outros, o terrorista praticamente devaneia sobre ela, escrevendo sobre como ela é interessante e o quanto ele gostava de passar o tempo com ela. Parece claro que ele adorava Clarke e provavelmente tinha uma queda por ela. Para Kaczynski, que nunca teve uma namorada — uma fonte de aflição em seus diários — Clarke, que era (e ainda é) casada, foi seu primeiro relacionamento significativo com uma mulher.

Embora as matérias da imprensa sempre tenham sugerido que Kaczynski, desde o início, fosse hostil com seus advogados, suas cartas demonstram que a verdade é o contrário. De fato ele se afeiçoou a quase toda sua equipe, a quem ele considerava como amigos íntimos. Depois de mais de 20 anos vivendo recluso, Kaczynski agora passava horas por semana com advogados e assistentes de defesa que o visitavam na prisão sempre que podiam, tentando mantê-lo animado. Eles lhe deram trabalho para mantê-lo ocupado, o que incluía decifrar vários textos codificados que haviam sido encontrados em sua cabana. No Natal, eles lhe deram um dicionário — muito estimado por Kaczynski.

“Nós desenvolvemos uma relação única com ele”, recorda Quin Denvir, um ex-defensor público federal que era assistente de Clarke no caso. “Nós passávamos horas com ele, tentando compreendê-lo, especialmente Judy”.

O que Kaczynski não sabia — e que terminaria por azedar o relacionamento — era que seus advogados estavam se preparando para montar uma defesa baseada na insanidade. Com tantas evidências incontestáveis de culpa, era a única coisa que eles acreditavam poder salvá-lo da pena de morte. Apesar de os registros do tribunal mostrarem que a defesa já vinha lançando as bases desta argumentação por meses, o terrorista aparentemente não percebeu o que estava acontecendo até o final de 1997 — apenas algumas semanas antes do julgamento começar. Apesar de ter ficado furioso com toda sua equipe de defesa, Kaczynski direcionou a maior parte da sua raiva para Clarke.

“Quin, Gary, Scharlette e (acima de tudo) Judy —

De todas as coisas que vocês poderiam ter me feito, o que vocês fizeram foi a mais cruel. Eu preferia ter sido morto, crucificado, cegado — qualquer coisa que não isso. A única coisa que vocês poderiam fazer agora para aliviar o tormento indescritível que estão me causando seriam se desligar do caso. Mas eu aposto que nenhum de vocês irá realmente se afastar, e independente de quaisquer racionalizações que possam inventar, a razão para não se desligarem é que permanecer no caso satisfaz suas próprias necessidades, sejam suas ambições profissionais ou necessidades emocionais ou qualquer coisa do tipo. Para satisfazer suas próprias necessidades vocês continuarão a me causar este tormento, em vez de se afastarem.

O que me tortura não é simplesmente o que vocês estão fazendo com o caso. Se algum advogado que não me conhecesse fizesse as mesmas coisas, isto não me causaria nem um pouco desta dor. O que me tortura é o fato de que vocês fingiram ser meus amigos e agora fazem isso comigo.

É uma questão de princípios para mim não ter nenhum envolvimento com profissionais de saúde mental. Este é um princípio que eu nem sempre adoto rigidamente. As pessoas frequentemente falham em adotar rigidamente seus próprios princípios, mas isto não significa que tais princípios não são genuínos.

De qualquer modo, durante os meses de preparação para este julgamento, meus advogados Michael Donahoe, e mais tarde Gary Sowards, me pressionaram bastante para que eu fosse examinado por determinados profissionais de saúde mental. Eu estava extremamente relutante em passar por tal exame, mas finalmente concordei em fazê-lo por dois motivos: primeiro, tanto o Sr. Donahoe quanto o Sr. Sowards me garantiram reiteradamente que os exames estavam protegidos pelo sigilo advogado-cliente, e que os resultados deste exame, e mesmo o fato de que eles aconteceram, não seriam divulgados a ninguém de fora da equipe de defesa sem minha permissão. Tanto Judy Clarke quanto Quin Denvir estavam cientes de que estas promessas haviam sido feitas a mim. E todos os meus advogados sabiam que esta questão era extremamente importante para mim.

Na terça, 25 de novembro, neste tribunal, eu descobri pela primeira vez que meus advogados haviam divulgado para os promotores o fato de que eu havia passado por vários exames mentais e, além disso, divulgaram os resultados de alguns testes neuropsicológicos. Em vista do que me havia sido prometido, eu fiquei horrorizado e chocado. Durante a pausa para almoço eu furiosamente confrontei meus advogados, e eles pareciam contritos, mas essencialmente não tinham uma desculpa para o que tinham feito, exceto por alegarem que haviam feito isso para meu próprio bem, da forma como interpretaram”.

[Trecho de uma das cartas de Ted Kaczynski a seus advogados]

Numa carta revoltada escrita na época, endereçada a seus advogados, “(e acima de tudo) Judy”, Kaczynski se enfurece por sua equipe de advogados ter explorado “a ânsia de um homem solitário por amizade, com o objetivo de manipular e enganá-lo” em relação à utilização de uma defesa baseada em insanidade que ele considerou uma traição “muitas vezes pior que a de meu irmão”.

“Eles professaram uma amizade calorosa por mim, eles cultivaram minha amizade de modo que eu desenvolvi um forte afeto por todos eles”, escreveu. “Alguns deles eu até amei”.

Apesar de psiquiatras forenses o terem diagnosticado como esquizofrênico, Kaczynski rejeitou a análise e as profissões na área de saúde mental como um todo. Ele estava preocupado que isso enfraquecesse a ideologia que havia exposto no Manifesto Unabomber. “De todas as coisas que vocês poderiam ter me feito, o que vocês fizeram foi a mais cruel”, escreveu ele. “Eu preferia ter sido morto, crucificado, cegado — qualquer coisa que não isso”.

Kaczynski parecia especialmente magoado com o fato de que Clarke havia determinado “desde o princípio” que ele era mentalmente doente. Ele ficou irritado e chateado por ela aparentemente não ter acreditado quando ele lhe disse que seus pais o haviam abusado verbal e emocionalmente na sua infância. E ele estava furioso por ela estar alegando insanidade em sua defesa para salvá-lo da pena de morte — algo que ele desejava, pois não podia suportar a ideia de passar o resto da vida atrás das grades.

Mesmo tendo se enfurecido com seus advogados e pedido ao juiz para afastá-los ou permitir que defendesse a si próprio, Kaczynski se sentia culpado, especialmente em relação a Clarke. “Apesar de tudo isso, eu pessoalmente a acho tão atraente que acredito que gosto mais de falar com ela do que com qualquer pessoa que já tenha conhecido, e sinto uma grande afinidade por ela”, ele escreveu numa carta de janeiro de 1998.

Contudo, ponderou ele, “será ela uma amiga ou uma inimiga? Em termos práticos, ela é uma inimiga para mim e tudo que eu defendo, mas em termos de relações pessoais, ela é muito amigável comigo, e eu nutro calorosos sentimentos de amizade em relação a ela”.

Membros da equipe de defesa de Theodore Kaczynski, da esquerda para a direita: os advogados Quin Denvir, Judy Clarke, a consultora de júri Denise DeLaRue e o advogado Gary Sowards, em 9 de dezembro de 1997, terça-feira. (AP Photo/Rich Pedroncelli)

Membros da equipe de defesa de Theodore Kaczynski, da esquerda para a direita: os advogados Quin Denvir, Judy Clarke, a consultora de júri Denise De La Rue e o advogado Gary Sowards, em 9 de dezembro de 1997, terça-feira. (AP Photo/Rich Pedroncelli)

No final de janeiro, quando o julgamento estava no início, Kaczynski tentou demitir sua equipe de defesa e representar a si mesmo. O juiz o impediu, mas o resultado foi um acordo em que Kaczynski concordou em se declarar culpado em troca de oito sentenças de prisão perpétua sem direito a condicional. Mesmo tendo feito isso, o terrorista se irritou com seus advogados — e especialmente Clarke — por reforçar “a opinião pública de mim como um louco”.

Ainda assim, Kaczynski, mesmo após sua condenação, continuou por muitos anos a se corresponder com Clarke, Denvir e outros membros de sua equipe de defesa. Ele enviou cartões de Natal a Clarke, que lhe mandava cartões postais de suas férias e até uma foto de Jax, o pug dela.

Mas na medida em que Clarke passou a se ocupar com outros casos, a correspondência diminuiu e Kaczynski novamente se chateou com ela (sua última carta no arquivo data de 2002). Quando um amigo escreveu sobre seus planos de visitar Asheville, na Carolina do Norte, Kaczynski fez um comentário malicioso, mencionando que soubera que a cidade era legal — exceto por ser a cidade de sua ex-advogada, Clarke.

No outono de 2013, o jornalista Mark Bowden contatou Kaczynski para um perfil que estava escrevendo sobre Clarke, relacionado à sua defesa do terrorista da Maratona de Boston. “Eu vou te dar minha impressão geral: Judy Clarke é uma vadia sobre rodas e uma verdadeira psicopata”, escreveu de volta Kaczynski, de acordo com uma carta do arquivo. Os meses que Clarke e sua equipe gastaram tentando compreendê-lo não fizeram diferença no seu destino: prisão perpétua sem condicional provavelmente seria o melhor resultado que ele poderia ter conseguido no julgamento, e ele fez isso simplesmente se declarando culpado. Ele está cumprindo pena na “supermax” federal em Florence, Colorado, onde seus companheiros de prisão incluem alguns dos clientes mais famosos de Clarke, incluindo o terrorista Eric Rudolph, das Olimpíadas de Atlanta; Zacarias Moussaoui, relacionado nos ataques de 11 de setembro — e Tsarnaev, que foi mandado para lá após ter sido condenado e sentenciado ano passado. Apesar dos esforços de Clarke, ele foi condenado à morte, o único de seus clientes que ela não pôde salvar.

Judy Clarke à esquerda, Gary Sowards e Quin Denvir (à direita), advogados de Ted Kaczynski, deixam o tribunal após a condenação do Unabomber. Em 4 de maio, Kaczynski foi sentenciado à prisão perpétua sem possibilidade de condicional.

Judy Clarke (à esquerda), Gary Sowards e Quin Denvir (à direita), advogados de Ted Kaczynski, deixam o tribunal após a condenação do Unabomber. Em 4 de maio, Kaczynski foi sentenciado à prisão perpétua sem possibilidade de condicional.

Série Cartas do Unabomber:

  1. Abrindo o Arquivo Unabomber
  2. A história de dois irmãos
  3. A “amada” do Unabomber
  4. Kaczynski e seus advogados
  5. Unabomber: perdido no cyberespaço
  6. A vida atrás das grades
  7. A estratégia de mídia do Unabomber

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Por:


Marcus Santana
Texto

Marina Ferezim
Revisão

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