De sua cela na prisão, Ted Kaczynski – o Unabomber, que aterrorizou os Estados Unidos na década de 1980 e início de 1990, manteve notáveis correspondências com milhares de pessoas ao redor do mundo. Com a proximidade do vigésimo aniversário de sua prisão, o OAV Crime reproduzirá uma série de artigos publicados pelo Yahoo! News com base em suas cartas e outros textos, armazenados em um arquivo da Universidade de Michigan. Eles lançam uma luz sem precedentes sobre a mente de Kaczynski — gênio, louco e assassino.
NO DESERTO DO SUDOESTE DOS EUA – Nós procurávamos uma placa num local em que não havia nenhuma. David Kaczynski havia nos dito para procurar uma fileira de caixas de correio, uma visão rara naquela imensidão remota, há 96 quilômetros da cidade mais próxima. E lá estava ele, esperando para nos levar ao longo de uma estrada de terra batida até o coração do deserto onde ele e sua esposa, Linda, vivem atualmente.
Esse desejo de fugir para longe era algo que David compartilhava com o irmão, Ted. Embora Ted seja sete anos mais velho, ele e David eram tão próximos quanto dois irmãos podem ser. Há trinta anos, os Kaczyinski, ambos formados na Ivy League [grupo formado por oito das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Universidade da Pensilvânia e Yale], largaram seus empregos e se refugiaram na floresta. Ted construiu uma cabana no interior de Montana; David construiu a sua no enorme deserto nos limites do Parque Nacional Big Bend, no Texas. Ambos viviam da terra, sem eletricidade ou água encanada.
Mas ao longo do tempo seus rumos se afastaram de modo dramático. Sozinho em sua cabana e alimentado pelo que os psiquiatras forenses dizem ter sido um grave distúrbio mental, Ted se tornou o Unabomber, aterrorizando a nação com cartas letais e pacotes-bomba que visavam chamar a atenção para sua filosofia antitecnologia. David, ignorando o que seu irmão fazia, retornou à sociedade e se casou. Anos depois, ele tomou uma das mais difíceis decisões que se pode imaginar: denunciar o irmão que amava como suspeito de assassinato, o que salvaria vidas de pessoas inocentes, e talvez a de Ted também. Ele tomou o que ainda acredita ser a única decisão racional.
“É como uma sombra na minha vida, e eu não sei o que fazer com isso”, afirmou David, sentado na varanda da isolada cabana que ele e Linda construíram recentemente. (Por ocasionalmente ainda receberem ameaças, eles pediram que a localização não fosse revelada). “Mas talvez seja hora de virar a página”
Para ajudar no processo, David escreveu um livro, “Every Last Tie: The Story of the Unabomber and His Family“ [“Cada Último Laço: A História do Unabomber e sua Família”, em tradução livre]. Ele reconta os acontecimentos do ponto de vista de David, e como ele e sua falecida mãe, Wanda, tiveram que lutar para reconhecer que um filho e irmão amado era um assassino frio.
“Eu ainda penso na decisão e sei que aquilo tinha de ser feito. Ele poderia e provavelmente mataria outras pessoas… se houvesse qualquer outro jeito de fazer o que fiz e continuar sendo um ser humano responsável, eu teria feito. Mas eu tinha uma responsabilidade. Mesmo sendo tão dolorosa. E ainda é”.
Assim David se tornou o herói torturado da história do Unabomber, tentando salvar Ted da pena de morte enquanto fazia o possível para compensar os crimes doentios do irmão. Ele se desculpou pessoalmente com todas as vítimas por meio de cartas, telefonemas e, em alguns casos, encontros pessoais, mesmo que seu irmão jamais tenha se desculpado ou expressado remorso. Quando David e sua esposa receberam uma recompensa de U$ 1 milhão do Departamento de Justiça pela informação que levou à prisão do irmão após uma caçada de 17 anos, eles a doaram quase em sua totalidade às vítimas.
Como David se recorda, foi Linda quem primeiro levantou a possibilidade de que Ted fosse o Unabomber. Isso foi em 1995, após ter lido sobre o “manifesto” do misterioso terrorista antitecnologia. Linda jamais conhecera Ted, que se recusou a ir ao casamento deles. Mas ela havia lido as cartas que ele enviara a David ao longo dos anos e ficou perturbada com o tom cada vez mais agressivo. Ela temeu que ele se tornasse violento com David ou com outros, se não consigo próprio. “Pessoas com uma mente sã não pensam assim”, disse ela ao marido.
Com a insistência de Linda, eles levaram as cartas de Ted a um psiquiatra pouco depois de se casarem em 1990. O médico disse que as cartas pareciam mostrar indícios de um “grave distúrbio mental”. Linda e David perguntaram como fazer Ted se tratar, mas descobriram que a menos que Ted se dispusesse eles enfrentariam o pesado fardo de provar que ele era perigoso para si mesmo ou para outros. Mal sabiam eles que Ted já havia matado a primeira de suas três vítimas. O médico também alertou que se David buscasse tratamento compulsório para Ted, ele arriscaria romper definitivamente o relacionamento já conturbado deles.
Mas cinco anos depois, quando Linda leu o Manifesto Unabomber, aquilo disparou um alarme. “Não fique bravo comigo”, disse ela a David. “Já lhe ocorreu, mesmo como uma possibilidade remota, que seu irmão possa ser o Unabomber?”.
David achou que a imaginação de sua esposa tinha ido longe demais. Ele sabia que seu irmão possuía problemas emocionais. Ele sabia desde que era uma criança em Ever Green Park, Illinois, na periferia de Chicago, que seu irmão era, nas palavras de sua mãe, “especial”. Mas não tinha como Ted ser um assassino, insistia ele. Apesar das suas cartas furiosas, ele também o conhecia como alguém gentil e sensível.
Entretanto, um mês depois, após David concordar em ler o Manifesto Unabomber, ele foi tomado de horror. As ideias do Unabomber — e seu linguajar — soavam terrivelmente familiares.
“Você tentou fazer com que o FBI me prendesse em condições que não envolvessem o risco de eu ser morto, e você insistiu para que o governo não pedisse pena de morte para mim. Mas, como já dito, você sabia bem que prisão perpétua seria pior que a morte para mim, então seu esforço para me ‘salvar’ da morte só pode ter sido uma tentativa de aliviar sua consciência me infligindo um castigo que em nossa sociedade é considerado menos severo que a morte.
É interessante que você tenha pedido ao FBI que prometesse não revelar sua identidade, como informante, e você ficou muito chateado quando a promessa foi quebrada. Evidentemente você estava envergonhado pelo que fez. Por que você fez isso? Para deter o Unabomber? Dificilmente. Você sabia que o Unabomber havia prometido parar os atentados se o manifesto fosse publicado, e você sabia que a promessa seria mantida se eu fosse o Unabomber, uma vez que sou rigoroso em relação a cumprir promessas. Além disso, se eu fosse o Unabomber você teria efetivamente interrompido os atentados me alertando que você avisaria o FBI se eu não desistisse.
O motivo real de você ter me denunciado é que você me odeia. Você diz que me ama, e deve amar. Mas você possui conflitos profundos, mal resolvidos e incontroláveis em relação a mim, e seu amor por mim não te impede de me odiar ao mesmo tempo. Este ódio se revelou repetidamente em seu comportamento em relação a mim nos últimos anos. E o motivo de você me odiar é seu torturante complexo de inferioridade. Sua suspeita de eu ser o Unabomber finalmente te deu a oportunidade de obter uma esmagadora vingança contra seu irmão maior, mais inteligente e competente do que você, mantendo a ilusão de que seus motivos eram ‘morais’.
Claro que você não vai aceitar a verdade sobre os seus próprios motivos. Eu sei por minha longa experiência que é inútil discutir com você quando seus sentimentos estão envolvidos, porque você irá recorrer a qualquer tipo de racionalização, não importa o quão absurda ela seja, para evitar enfrentar duras verdades. Você veste uma espécie de véu sobre os seus motivos para não ter que ser consciente deles, e é esse véu que lhe permite viver com isso. Mas algum dia o véu cairá e você se verá como realmente é. E nesse dia você irá para o inferno porque, para você, se ver como realmente é será verdadeiramente um inferno”.
[Trecho de uma das cartas de Ted Kaczynski ao irmão David]
A suposição de David em relação ao FBI, quando ele os contatou com sua suspeita, era de que ele seria avisado antes que o departamento entrasse em ação, e que seu papel seria mantido em sigilo. Mas quando vazou na mídia a informação de que havia um suspeito de ser o Unabomber, os agentes federais agiram rápido. David e sua família praticamente não foram avisados, e alguém vazou seu papel para a mídia. Em questão de horas, repórteres do mundo inteiro estavam batendo em sua porta.
Um dia depois, numa cela em Lincoln, Montana, Ted perguntou a seu defensor público como os federais o haviam descoberto. “Ah, você não soube?”, disse o homem, de acordo com uma história contada a David mais tarde por um membro da equipe de defesa de Ted. “Foi o seu irmão”.
Ted balançou a cabeça com incredulidade. “Não”, disse ele. “David não faria isso”.
De acordo com diários apreendidos pelo FBI, Ted havia passado anos sendo consumido pelo ódio à sociedade moderna. Mas após sua prisão, a obsessão de Ted passou a se concentrar no irmão e no que ele via como uma traição imperdoável. Na visão de Ted, David havia abandonado os valores que ambos compartilhavam ao retornar à sociedade, e depois o vendeu ao FBI. E o pior era que agora David estava contando “mentiras intermináveis” — a mais flagrante delas era que Ted era mentalmente doente. “MENTIRAS”, escreveu Ted numa carta a um correspondente, que ele adicionou ao seu arquivo de papéis na Coleção Labadie da Biblioteca da Universidade de Michigan.
Na cadeia, Ted lia obsessivamente cada entrevista que David dava à imprensa. Com lápis de cor, ele marcou um enorme artigo do The New York Times sobre a época tragédia dos “Irmãos Kaczynski” — um bom, outro mau. Sublinhando citações de David em matéria atrás de matéria, ele rabiscou as mesmas palavras repetidamente em sua caligrafia perfeita: “ERRADO. ERRADO. ERRADO”.
Enquanto seu julgamento se aproximava em Sacramento, Califórnia, Ted se tornou ainda mais furioso. Por meio de seus advogados, ele se recusou a falar com sua família. Sua mãe e irmão não haviam sido nada além de um “desastre” para ele, escreveu. Suas últimas palavras para David vieram em duas cartas calorosas, aproximadamente seis meses depois de sua prisão, apresentando sua teoria sobre o porquê de seu irmão tê-lo traído:
“De todas as coisas que concebivelmente você poderia ter me feito, o que você fez foi de longe a mais cruel”, escreveu Ted.
“Você me conhece bem o bastante para saber que acima de tudo eu necessito de liberdade física, silêncio e solidão e que, para mim, prisão perpétua será um destino pior que a morte… por que você fez isso? Para deter o Unabomber? Dificilmente. O motivo real de você ter me denunciado é que você me odeia”.
Numa segunda carta, Ted citou as referências de David à doença mental do irmão.
“Apesar de você não admitir para si mesmo, você sabe intimamente que está me infligindo intenso sofrimento fazendo as declarações públicas que você fez, e você estava fazendo isso porque você me odeia em razão de seus próprios sentimentos de inferioridade e inadequação em relação a mim”.
Desde aquele dia, ele não contatou David novamente. David, a conselho dos advogados de Ted, desculpou-se com seu irmão para tentar quebrar o gelo e conseguir informações que pudessem ajudar em sua defesa.
“Eu amo você”, escreveu David em uma carta de outubro de 1996. “Eu sinto muito, muito pelo que fiz e por isto te magoar”.
Foi a primeira de dezenas de cartas que David escreveu a seu irmão ao longo dos últimos 20 anos. “Não sei se foi completamente verdadeiro”, diz agora David sobre o pedido de desculpas. “Minha preocupação principal era descobrir se conseguia abrir uma porta, se aquilo era algo que ele precisava. Talvez fosse algo que eu pudesse fazer por ele, para ajudá-lo”.
Embora David soubesse estar certo sobre denunciar seu irmão, ele sofreu com a decisão — e ainda sofre porque ele ainda ama Ted e deseja protegê-lo. Em busca de paz, ele encontrou conforto no budismo, e passou anos na terapia.
Mas Ted rejeitou todos os contatos — mesmo de sua mãe, Wanda, que nunca desistiu de tentar se conectar com seu filho.
“Alguém me disse que a maior tragédia na vida é amar alguém que não pode te amar de volta e/ou ter alguém que te ame sem poder amar aquela pessoa de volta. Isso é especialmente verdadeiro para um pai que ama profundamente um filho que por algum motivo não pode amar de volta. Bem, para mim, com 88 anos, a dor não pode durar muito”.
[Wanda Kaczynski, em carta escrita ao filho em 2005]
Ted não respondeu. Wanda faleceu em setembro de 2011.
Ao longo dos anos, David encontrou algum consolo como defensor da saúde mental e opositor da pena de morte. Ele também descobriu um “tremendo alento” num lugar incomum: através de Gary Wright, uma das vítimas de seu irmão, que atualmente é um dos melhores amigos de David.
Apesar de várias vítimas e sobreviventes do Unabomber terem rejeitado as tentativas de David de se desculpar, ele criou laços com Wright, que quase foi morto por uma bomba plantada do lado de fora de sua empresa de computação em 1987. A explosão lançou tantos pregos no corpo de David que as enfermeiras no hospital disseram que ele parecia um porco-espinho, mas ele milagrosamente sobreviveu, apesar de ainda sentir dores e ter sofrido danos significativos nos tendões das mãos.
Wright, cristão devoto, encontrou consolo após o ataque ao se dispor a perdoar quem lhe tivesse feito aquilo. Então, quando David ligou no final de 1996, Wright lhe garantiu que não o responsabilizava.
Do outro lado da linha, David ficou impressionado pela gentileza de Wright, e falando sobre ele quase 20 anos depois, ele ainda está. “A pessoa mais disposta a me ajudar foi alguém que meu irmão havia tentado matar”, diz, maravilhado. Os dois se tornaram amigos, e viajaram juntos pelo país, falando sobre a pena de morte e a importância do perdão.
No que talvez seja um último insulto a seu irmão, Ted, de acordo com seus papéis, tentou se assegurar de que quando morrer não seja sepultado com sua família e que seu irmão não tenha envolvimento na disposição do corpo.
Na verdade, não está claro quem possui tal responsabilidade. Ao longo dos anos, Ted, que completa 74 anos em maio, mudou repetidamente de ideia, refletindo sobre suas inconstantes relações. Sua ex advogada Judy Clarke foi listada entre os responsáveis na papelada que ele preencheu em 1997, e embora eles tenham mantido contato por muitos anos após ele se declarar culpado, atualmente ele a detesta. Em 2007, ele fez outro documento listando um grupo de amigos como responsáveis, mas é incerto se ele continua a falar com vários deles.
“Eu acredito que uma coisa que pesa sobre David é saber que ele provavelmente jamais irá falar com Ted novamente”, afirma Gary Wright. “Ted vai acabar morrendo, e provavelmente ficará a cargo de David buscar Ted e sepultá-lo”.
Durante anos, David continuou a escrever a seu irmão, ao menos duas vezes por ano — no aniversário dele e nos fins de ano. É difícil, ele reconhece, encontrar o que dizer a um irmão que não apenas não irá falar com ele, mas que tem sido uma sombra na sua vida.
Em dezembro, David respeitosamente escreveu novamente a Ted, mas apontou para um fim. “Eu quero crer que a reconciliação é sempre uma possibilidade”, ele disse na entrevista. “Eu acredito que ele sabe que eu estaria aberto a encontrá-lo. Eu iria vê-lo em um minuto se ele estivesse aberto a isso. Mas eu não vou passar a vida inteira batendo na porta se ela está fechada e permanece fechada”.
Ninguém sabe o que se passa no coração de Ted, ou se ele irá abri-lo para o irmão que ainda o ama. Mas quase certamente a porta de sua cela abrirá apenas para levá-lo numa maca, momento em que, não importa o que David queira lhe dizer, será tarde demais.
Série Cartas do Unabomber:
- Abrindo o Arquivo Unabomber
- A história de dois irmãos
- A “amada” do Unabomber
- Kaczynski e seus advogados
- Unabomber: perdido no cyberespaço
- A vida atrás das grades
- A estratégia de mídia do Unabomber
- Leia também: Os Maiores Terroristas do Século XX