“Os homens têm medo que as mulheres riam deles. As mulheres têm medo que os homens as matem”.
[Margaret Atwood]
Em seu relato do reinado de terror de Peter Sutcliffe, Gordon Burn, escritor inglês, escreveu como o primeiro assassinato de Sutcliffe foi aparentemente desencadeado por uma mulher que riu dele, o que parece uma razão muito mais plausível da contada pelo próprio Sutcliffe quando foi preso em 1981: Deus lhe ordenara matá-la, apontou o assassino em série.
Esta mulher sorridente era uma garota de programa, profissão perigosa, pois era exatamente esse tipo de mulher que Sutcliffe abordava, mutilava e matava. Os nomes das 13 mulheres assassinadas por ele encheram jornais e sites quando a morte do assassino em série inglês foi anunciada no mês passado.
Nas redes sociais, elas também foram lembradas, incluindo posts da historiadora Hallie Rubenhold, que em seu livro The Five (As Cinco, em tradução literal) recriou a vida das cinco vítimas conhecidas de Jack, o Estripador, uma tentativa louvável de mostrar ao mundo, careca de saber da história de Jack, que suas vítimas eram pessoas e tinham histórias.
Na época dos crimes de Sutcliffe (e, na verdade, até hoje), suas vítimas não tinham nomes, elas eram apenas “prostitutas”, não pessoas como nós, com vidas — filhas, mães, irmãs —, mulheres com esperanças e futuros destruídos de forma brutal. Os assassinatos em série do caminhoneiro inglês foram motivados em sua essência por sexo, mas o ódio misógino que sempre existiu na humanidade estava lá, principalmente nos cidadãos de bem (ok, não pude deixar de usar essa expressão), o que é a parte mais bizarra deste caso. Sutcliffe transformou o seu ódio de mulheres em violência letal. Já os homens “de família” mostraram toda sua imundície moral.
“Mulheres Respeitáveis”
Peter William Sutcliffe nasceu em 1946, em Bingley, Reino Unido. Era o primeiro de 6 filhos. Seu pai era um ex-militar da Marinha e sua mãe trabalhava em um fábrica de munições. Teve uma infância introspectiva e sofreu bullying na adolescência devido a um pequeno problema de locomoção (tornozelos que não aguentavam seu peso, segundo seus pais). O pai aceitava que seus filhos trouxessem companhias para casa, pois gostava de espioná-los namorando e chegava a apalpar as garotas (que belo exemplo de pai!). A mãe de Peter teve um relacionamento extraconjugal e o pai, ao descobrir, fez questão de levar os filhos ao hotel onde ela estava com o amante. Chegando lá, a obrigou a mostrar a lingerie que estava usando e chamou-a de prostituta. Sutcliffe disse em uma entrevista que viu o quanto a mãe se sentiu humilhada na frente dos filhos.
Este episódio é sintomático e psicólogos acreditam ter sido o gatilho para Sutcliffe começar a matar mulheres e prostitutas. Até mesmo as mulheres “boas” ou “perfeitas” se tornaram distorcidas em sua visão de mundo: mulheres vão destruir o homem, mulheres vão mentir, mulheres vão trapacear, mulheres não são respeitáveis. O episódio destruiu a visão que ele tinha de sua mãe e sendo ele um homem machista como seu pai, aquilo foi a faísca necessária para o que viria a seguir. Homens como Sutcliffe são incapazes de realizarem uma análise adulta, humana e profunda de tais acontecimentos, suas visões, carregadas de preconceitos, são extremamente limitadas e penduladas para o ódio.
Sua história guarda semelhanças com a de outro assassino em série, o americano Carroll Cole. Quando criança, Cole presenciou sua mãe adúltera em encontros com homens, lembranças que mais tarde contribuíram para o seu ódio de mulheres e consequente assassinatos em série. (Discutimos o caso Cole no quarto episódio do podcast OAV Perfil).
O episódio no hotel aconteceu quando Peter Sutcliffe tinha 23 anos, mas antes ele já apresentava comportamento estranho diante dos poucos amigos que tinha no seu trabalho como coveiro, dizendo que tinha interesse em necrofilia e chegou a roubar anéis dos corpos que enterrava.
Em 1974, aos 28 anos, casou-se com Sonia Szurma, que apresentava sintomas de esquizofrenia, dizendo que podia curar pessoas.
Um ano depois, Peter Sutcliffe começou a trilhar um caminho sangrento por Yorkshire, matando grotescamente mulheres quase à vista de todos, o que lhe rendeu o apelido de “Estripador de Yorkshire”. O apelido contribuiu para sua figura mística e hoje folclórica. Este homem já é história, mesmo que o coveiro e motorista de caminhão tenha usado chaves de fenda, facas e martelos para enviar ao outro mundo pessoas inocentes. Ele inventou ouvir vozes na cabeça. Um mentiroso que usava as ordens Deus como desculpa, e, na verdade, se tornou o reflexo do diabo. Ele era o verdadeiro arrepio no escuro.
Sua terrível carnificina aconteceu entre 1975 e 1980. Ele atacou 22 mulheres, das quais 13 morreram e 9 sobreviveram, muitas com sequelas terríveis. Mas talvez o mais assustador tenha sido a reação daqueles supostamente intelectuais, diferenciados o suficiente para estarem em posições de poder. Basicamente o pensamento dessa gente (policiais, políticos, a justiça — o que não deixa de ser o reflexo de nós mesmos) era: “ok, esse cara está matando prostitutas, mas agora ele também está atacando meninas ‘inocentes’. Agora a coisa ficou feia para ele. Prostitutas ok, muita gente as odeia mesmo, mas menininhas inocentes não!”. O promotor do caso, no julgamento do estripador em 1981, em uma fala surreal, regurgitou: “Algumas eram prostitutas, mas talvez a parte mais triste deste caso é que algumas não eram. Os últimos seis ataques aconteceram a mulheres totalmente respeitáveis”. Um minuto de silêncio por favor.
Em 2006, quando um motorista de empilhadeira chamado Steven Wright matou cinco mulheres em seis semanas, ninguém se interessou. Qual foi mesmo o placar do jogo de futebol? Ele não tinha a aparência de Ted Bundy, já era um tiozão descuidado que usava prostitutas da mesma forma que muitos homens usam. Quando suas vítimas foram rotuladas como “trabalhadoras do sexo”, os conservadores chiaram, como se isso importasse alguma coisa. Vejam, essas mulheres foram mortas, elas perderam a vida, que diferença faz o rótulo do trabalho delas? Não devemos nos preocupar com outra coisa? Como, por exemplo, o que as levou a ter essa vida? Isso se chama humanidade, amigo. As gerações mudam, mas os preconceitos e desumanidade permanecem, me arrisco a dizer que até piores. Sutcliffe e Wright na Inglaterra. Pickton no Canadá. Trocentos outros nos Estados Unidos. Gomes e Patrocínio no Brasil. Passaria o dia inteiro citando exemplos aqui. No fim, o que todos esses casos nos mostram é que centenas de mulheres são mortas mundo afora devido à desumanidade e misoginia que existe em nossa sociedade. Nos casos dos assassinos em série, se autoridades e a mídia se importassem de verdade, suas carreiras definitivamente seriam abreviadas pois certamente seriam pegos antes de fazerem o “limpa” nas ruas.
As mulheres são usadas e abusadas de todas as formas e ainda são designadas como culpadas por tudo que lhes acontece, como se ser mulher por si só já fosse uma tremenda de uma culpa. Até quando essa linha de raciocínio será suportada e mantida?
Sutcliffe foi entrevistado diversas vezes pela polícia e liberado, era considerado um cidadão de bem, acima de qualquer suspeita. Assim como ele, muitos outros homens eram parados em seus carros e depois liberados. A polícia não tinha um “estímulo” real para procurar o assassino, afinal, eram só prostitutas. As evidências eram ignoradas ou nem eram cruzadas.
O americano Leonard Lake, outro aniquilador de mulheres, disse certa vez que “Deus fez as mulheres para cozinhar, limpar a casa e fazer sexo. Quando não estão em uso, deviam ser trancafiadas”. Já Sutcliffe cresceu num mundo onde as mulheres serviam para “fritar bacon e trepar”. Ele mesmo não havia feito nada de errado, estava apenas ajudando de graça a prefeitura e consequentemente a sociedade “limpando as ruas”, assim como seu colega de “profissão” Kenneth Bianchi que, indignado por ser julgado por matar “vadias”, perguntou revoltado ao juiz: “Não fiz porra nenhuma de errado. Por que é errado se livrar de algumas bocetas fodidas?”
Não existe motivo nenhum para muitos assassinos que matam mulheres a não ser o fracasso deles próprios, o que eles acabam projetando em suas vítimas. As desculpas são as mais variadas: Elas riram dele. Elas eram muito sedutoras. Elas negaram prazer. Eram vadias, frígidas, chatas. Elas zombaram, olharam para outro homem ou não olharam para ele. Ela dormia com outro homem. Ela disse não, disse sim, não disse nada.
No dia 02 de janeiro de 1981, em Sheffield, Sutcliffe estava em seu carro com uma prostituta de 24 anos quando foi preso pela polícia. O motivo: a placa de seu veículo era falsa. Ele só foi considerado suspeito porque a polícia voltou ao local onde ele havia sido detido e encontrou uma corda, um martelo e uma faca (que ele tratou de jogar fora quando pediu para urinar antes de ser levado à delegacia). No banheiro da delegacia ele também escondeu uma faca. Depois de dois dias de interrogatório ele confessou os crimes, não sem antes citar Deus como o mandante.
Apesar de ser diagnosticado com esquizofrenia paranoide, o juiz não levou isso em conta e Peter recebeu 20 sentenças perpétuas. Depois de 13 anos que Sutcliffe estava preso, sua esposa pediu o divórcio e casou-se novamente. Ele ficou preso por 30 anos em um hospital psiquiátrico, depois foi transferido para a prisão de Frankland, no condado de County Durham, em 2016. Ele ficou cego do olho esquerdo em uma briga com outro prisioneiro e depois também perdeu a visão do olho direito por complicações do diabetes.
Nos seus últimos anos de vida decidiu usar o sobrenome de solteira de sua mãe, Coonan, pois tinha medo que seu túmulo fosse vandalizado após sua morte.
Peter Sutcliffe faleceu no dia 13 de novembro de 2020, após complicações da Covid-19. Ele não quis se submeter a nenhum tipo de tratamento. Além de diabético, ele tinha problemas cardíacos. Foi cremado em um funeral organizado por sua ex-mulher, Sonia. Os irmãos não foram informados da cerimônia e ficaram desolados, pois haviam sido notificados anteriormente que os membros da família poderiam assistir online, via Zoom. Seu irmão, Mick, disse que ele e sua família precisavam fechar aquele ciclo de dor, que colocou a família Sutcliffe em um inferno, se despedindo do irmão, mas que não foi possível. Essa dor, também, jamais acabará para os familiares de todas as vítimas.
Peter Sutcliffe deixou um legado de dor, horror e bestialidade. Foram 13 vítimas fatais, 9 vítimas sobreviventes. Todas mulheres. Ele deixou 23 crianças órfãs, à época, e milhares de pessoas envolvidas em uma atmosfera de medo, incerteza, angústia. Tudo isso em nome de Deus. Pelo menos era o que ele afirmava.
A verdade, porém, não está no divino e sim nas profundezas imundas do coração humano.
“Matérias de jornais no dia seguinte, citando que uma ‘jovem mulher inocente foi assassinada’, tristemente refletia a atitude subjacente da polícia e do público que prostitutas que eram assassinadas não eram inocentes, e de alguma forma mereciam a ‘punição’ aplicada a elas”.
[Fiona Steel, Peter Sutcliffe. Crime Library]
Informações:
Nome: Peter William Sutcliffe
Nascimento: 2 de Junho de 1946. Bingley, Inglaterra
Morte: 13 de Novembro de 2020 (74 anos)
Conhecido como: O Estripador de Yorkshire
Vítimas: 13 confirmadas
Período: 1975 a 1980
Captura: 2 de Janeiro de 1981
País: Inglaterra
Método: esfaqueamento, degolamento, golpes de martelo e mutilação
Por:
Fontes consultadas: [1] Five years of visceral fear: How terror bred by Yorkshire Ripper made Seventies north the darkest of places. The Independent; [2] Families of Yorkshire Ripper victims receive police apology for language used during investigation. The Independent; [3] Yorkshire Ripper Peter Sutcliffe cremated at secret funeral. The Independet; [4] Steel, Fiona. Peter Sutcliffe. Crime Library; [5] Peter Sutcliffe dead: The twisted life of the Yorkshire Ripper. Yorkshire Evening Post; [6] Women in Yorkshire describe living in “culture of fear” from Peter Sutcliffe’s murders. Yorkshire Post.
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