Meses após a publicação do livro “Zekka”, uma controversa autobiografia escrita pelo serial killer que ficou mundialmente conhecido como Seito Sakakibara, a indignação pública japonesa não mostra sinais de diminuição.
A audaciosa obra, na qual Sakakibara narra em detalhes macabros os assassinatos que cometeu ainda quando criança em Kobe, 1997, deixou em muitos a dúvida do que ele fará com os bens conquistados por meio da publicidade de seus crimes.
Com tal questionamento, tem aumentado a cobrança da população para que o Japão introduza em sua legislação leis similares às chamadas “leis do Filho de Sam”, nome inspirado no apelido do serial killer americano David Berkowitz.
De fato, aparentemente como reflexo da repulsa pública para com o livro, uma enquete online promovida pelo site Yahoo logo após o lançamento do livro, em junho último, mostrou que 90,8% dos japoneses estão de acordo com tal lei.
Qual a natureza da lei?
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Criada nos Estados Unidos, a lei Filho de Sam refere-se à parte da legislação destinada a impedir que criminosos e ex-condenados lucrem com publicidade proveniente de seus crimes. Aproximadamente 40 estados americanos aderiram a ela
A lei tipicamente funciona permitindo que o Estado retenha e mantenha numa conta bancária o lucro do trabalho do criminoso, inclusive filmes e livros, para que posteriormente o dinheiro possa ser distribuído às vítimas, conforme pedido.
As leis causam controvérsias?
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Sim. A lei inicial foi promulgada pelo estado de Nova York em 1977 com o objetivo de evitar o inaceitável cenário de criminosos lucrando, à custa de suas vítimas, com a notoriedade de seus crimes hediondos. Posteriormente a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a lei, considerando-a inconstitucional. Mais tarde ela foi modificada.
O tribunal superior decidiu em 1991 que a lei de Nova York era “inconsistente” com a Primeira Emenda da Constituição Americana, pois “impunha encargos financeiros em oradores por causa do conteúdo de seu discurso”.
Implícita no julgamento da Suprema Corte estava a ideia de que reprimir obras com um conteúdo específico — nesse caso, relatos de criminosos — iria contra o princípio da liberdade de expressão e teria efeito negativo na democracia.
Seguindo tal lógica, obras de autores proeminentes e ex-ativistas dos direitos civis que já estiveram encarcerados, incluindo Malcolm X e Martin Luther King, estariam sujeitas às punições previstas pela lei, apontou o tribunal.
Tal decisão fez com que Nova York e outros estados reescrevessem suas próprias leis “Filhos de Sam” para evitar decisões similares por parte do Supremo Tribunal.
Por que a obra “Zekka” provocou pedidos para que tal lei fosse aprovada no Japão?
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Apesar de Sakakibara não ser o primeiro criminoso a publicar uma autobiografia no Japão, o homem hoje com 32 anos se tornou o bode expiatório devido à repercussão bastante negativa junto a opinião pública.
Homicidas como Tatsuya Ichihashi, que em 2007 estuprou e assassinou a professora britânica Lindsay Hawker, de apenas 22 anos, e Tomohiro Kato, que assassinou sete desconhecidos a facadas num ataque com um carro na rua de Akihabara, em Tóquio, estão inclusos na lista de criminosos que já publicaram livros.
Mas ao contrário dos citados, Sakakibara – que na época do assassinato tinha apenas 14 anos de idade – permanece até hoje identificado apenas por seu apelido e não foi condenado a pena alguma, protegido pela lei juvenil.
Tal realidade, somada ao fato de ele não ter se importado em notificar antecipadamente os familiares de suas vítimas sobre a publicação do livro, provavelmente gerou um nível alto de hostilidade pública quanto a obra e os possíveis ganhos financeiros relacionados a ela.
Ota Publishing Co., que publicou “Zekka”, contou ao The Japan Times que Sakakibara acredita não ter “nenhuma outra alternativa além” de aplicar seus ganhos na compensação às famílias das vítimas, pois sua dívida de aproximadamente ¥200 mil yens em danos para com as famílias continua em aberto.
Já existem medidas no Japão para impedir que criminosos lucrem com a publicidade de seus crimes?
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Sim, há leis direcionadas à causa, mas que apenas se aplicam a crimes relacionados a drogas ou a crime organizado.
Vítimas de crimes em geral podem processar os infratores condenados por danos civis. Se obtiverem sucesso, vítimas podem pedir que o Judiciário confisque os bens do criminoso, inclusive poupanças, salários e privilégios obtidos com obras expressivas, com o objetivo de conseguir a compensação determinada pelo tribunal.
O governo, como parte dos esforços tomados para emponderar vítimas, estabeleceu em 2008 um sistema que propunha livrar vítimas do incômodo incluso no processo de investigar os danos e coletar evidências. Mas o sistema, aponta o advogado Masatami Otsuka, tende a ser desconsiderado por juízes e infelizmente permanece pouco utilizado.
Se tais opções existem, há algum mérito em introduzir uma lei Filho de Sam?
O advogado Hiroaki Hoshino, que reside em Tóquio, acredita que uma lei do tipo no Japão ajudaria vítimas, inclusive os parentes mais próximos, a ter acesso aos ganhos dos criminosos de forma muito mais rápida e simples que a atual.
No sistema atual, geralmente levam-se de dois a três anos para arquivar e completar um processo de danos, diz Hoshino, adicionando que há ainda uma ladainha legal adicional envolvida antes que as vítimas possam ser finalmente compensadas.
“Por exemplo, a versão japonesa da lei pode ser implementada de forma que torne possível pular o procedimento normal de apuramento de danos depois de apresentar uma queixa inicial, e simplesmente esperar até que as autoridades apreendam os ganhos dos criminosos e entregue às vítimas depois,” diz Hoshino.
Que desafios o Japão teria que superar para introduzir tal lei?
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Considerando que a lei não vai tão longe a ponto de banir a publicidade do trabalho do criminoso, especialistas concordam que o conceito da lei seria considerado constitucional no Japão. Mas a implementação, advertem eles, é uma questão diferente.
Por exemplo, disse Hoshino, questões constitucionais podem ser levantadas caso a lei seja abordada de tal forma que tire os bens do criminoso de forma indefinida. Sem definir limites à quantia de bens que pode oficialmente ser confiscada, diz ele, corre-se o risco de infringir o direito intrínseco do criminoso à propriedade.
Mencionando a decisão do Supremo Tribunal americano que considerou a lei inicial de Nova York como inclusiva demais, o advogado Ito defende que a lei devia ser aplicada apenas em obras como “Zekka”, cujo propósito primário é relatar os crimes do assassino.
O Livro
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“Deixe-me confessar uma coisa: eu pensei que a visão era bonita”, escreve Seito Sakakibara sobre a cabeça de uma vítima que ele deixou em frente a uma escola em Kobe.
“Eu senti como se tivesse nascido apenas para ver a beleza etérea do que estava na frente dos meus olhos. Eu pensei que eu poderia morrer.”
[Seito Sakakibara, “Zekka”]
Na polêmica autobiografia, Sakakibara expressa pesar por suas ações mas os detalhes escabrosos levam os leitores a se perguntarem sobre o real sentimento do homem ao escrever a obra.
Hoje com 32 anos, Sakakibara matou duas crianças e feriu outras três em ataques que aterrorizaram o Japão. No livro, ele afirma que possuia um “desvio sexual incorrigível” que o levou a ter satisfação cruel ao matar e dissecar animais até, finalmente, aos 14 anos, começar a matar seres humanos.
“Quando eu entrei no ensino fundamental já estava entediado em matar gatos, e gradualmente encontrei-me fantasiando sobre como seria a sensação de matar seres humanos como eu.”
[Seito Sakakibara, “Zekka”]
Aos 14 anos, ele estrangulou e decapitou um conhecido de 11 anos, Jun Hase, nas encostas de uma montanha. Ele, então, levou a cabeça do garoto para o banheiro de sua casa e fez um ato “muito mais atroz do que o assassinato.”
Ele cumpriu sua pena em um reformatório para adolescentes e, após sair em 2004, passou a trabalhar fazendo bicos para ganhar a vida.
Em um epílogo, ele fala da culpa que o assola até hoje e oferece uma desculpa para parentes das vítimas, dizendo que agora ele reconhece a gravidade do que fez.
“Eu não poderia mais manter o silêncio sobre o meu passado. Eu tinha que escrever. Caso contrário, eu pensei que poderia enlouquecer.”
[Seito Sakakibara, “Zekka”]
Mamoru Hase, pai de Jun Hase, tentou fazer com que o livro fosse banido das livrarias.
“O livro pisoteia completamente em nossos sentimentos. Está claro que ele não sente pelo que fez,” disse ele segundo a mídia japonesa.
Misa Ochiai editor encarregado da Ota Publishing Co., disse que a empresa foi em frente com o projeto porque é importante ter o registro do assassino, além do mais, a obra pode ajudar na discussão sobre a gravidade de crimes cometidos por menores de idade.
Ciente de que o livro desencadeou uma reação furiosa dos familiares das vítimas, Ochiai acredita que o livro beneficiará a sociedade japonesa.
“É quase sem precedentes que um ex-delinquente juvenil narre em primeira mão os detalhes de seus crimes para o público. Por várias razões, acreditamos firmemente que o seu conto vale a pena ser lido.”
Não deixe de ler:
Fonte: Child killer memoir ‘Zekka’ fuels calls for tougher proceeds-of-crime laws in Japan. Japan Times;
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