O Cão Fraldeiro, o Príncipe Astrônomo e a Busca da Harmonia Cósmica

O Cão Fraldeiro Na pacífica vila alemã de Weil, perto da Floresta Negra, vivia, em uma casa não muito grande, a numerosa família do prefeito Sebaldus Kepler. Sebaldus era...
O Cao Fraldeiro

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O Cão Fraldeiro


Na pacífica vila alemã de Weil, perto da Floresta Negra, vivia, em uma casa não muito grande, a numerosa família do prefeito Sebaldus Kepler. Sebaldus era um homem orgulhoso e poderoso, e até “eloquente, pelo menos para um homem ignorante”.  Esse último comentário foi feito por um dos muitos netos de Sebaldus, Johannes, nascido no dia 27 de dezembro de 1571.

Quando tinha 26 anos de idade, Johannes calculou os perfis astrológicos de vários membros de sua família, provavelmente numa tentativa desesperada de se libertar de sua influência patológica e de justificar seus temperamentos doentios, que seriam consequência da intervenção maléfica das estrelas.

A avó de Johannes era “inquieta, esperta e mentirosa, de natureza tempestuosa, sempre criando problemas, violenta […] E todas as suas crianças herdaram um pouco disso”. Os Kepler tiveram doze filhos. Os três primeiros morreram na infância. O seguinte, Heinrich, pai de Johannes, era um mercenário cruel, que constantemente batia em sua mulher e filhos, um homem “malvado, inflexível, agressivo […] um vagabundo […][Em] 1577 […] ele quase foi enforcado [por um crime desconhecido]. [Em] 1578 […] um barril de pólvora explodiu, dilacerando o rosto de meu pai […]. [Em] 1589 […] ele abusou terrivelmente de minha mãe, finalmente saiu de casa e morreu”. Dos seus outros oito tios e tias, Kepler escreveu que seu tio Sebaldus era “um astrólogo e jesuíta […] [que] viveu uma vida pecaminosa […] Contraiu o mal-francês [sífilis]. Era malvado e odiado pelos outros habitantes de sua cidade […] vagueou pela França e Itália em completa pobreza”. Sua tia Kunigunda “foi mãe de muitas crianças, morreu envenenada, acham, em 1581”. Tia Katherine “era inteligente e prendada, mas casou muito mal […] hoje em dia é uma mendiga”.

Kepler não escreveu muito mais sobre os demais tios ou tias. Sobre sua mãe, Katherine, Kepler escreveu que era “pequena, magra, sombria, fofoqueira e agressiva, e estava sempre de mau humor”. Criada por uma tia que, por sua fama de bruxa, foi queimada viva, Katherine quase teve o mesmo fim. Tinha a reputação de lançar maldições contra seus inimigos e de ser uma especialista em poções feitas de ervas. Entre ficção e fato, o jovem Johannes deve com certeza ter se sentido amaldiçoado pelas estrelas. Dos seus seis irmãos, três morreram na infância e dois milagrosamente se tornaram pessoas razoavelmente normais. Entretanto, seu irmão, Heinrich, que tinha quase a sua idade, era um epilético cuja vida foi repleta de sofrimentos e tragédias.

E o jovem Johannes? Sua infância foi uma sucessão de doenças, surras e acidentes. Prematuro e fraco, aos quatro anos Kepler quase morreu de varíola, o que deixou suas mãos deformadas. Aos catorze anos, segundo suas notas, “eu sofri continuamente de doenças de pele, que criavam feridas pútridas que nunca cicatrizavam, voltando sempre a infeccionar. No dedo médio de minha mão direita eu tinha um verme, na mão esquerda uma horrenda ferida […]”. A lista continua, mas acho que você irá concordar comigo que já temos exemplos suficientes. Essa é a história de uma criança deprimida e doente, oprimida por circunstâncias terríveis, totalmente fora de seu controle. A maioria das crianças teria com certeza sucumbido a esse massacre psicológico, tornando-se um adulto altamente problemático. Mas Kepler cresceu para se tornar uma das pessoas mais produtivas e brilhantes da História. Cercado de dor e sofrimento, ele olhou mais além, em busca de beleza e verdade, purificando-se por meio de seu poder criativo. Em seu trabalho, Kepler buscava a paz interior que a vida tão amargamente lhe negara.

Dois eventos memoráveis marcaram a infância de Kepler. Em 1577, quando ele tinha seis anos, sua mãe levou-o para ver a “nova luz nos céus”, um cometa com uma longa cauda que chegava a ofuscar Vênus com seu brilho. Aos nove anos, ele se lembra de “ser chamado pelos meus pais para assistir a um eclipse lunar. A Lua apareceu bem vermelha”. Esses eventos devem ter causado uma profunda impressão no jovem Kepler, embora seu interesse por astronomia só viesse a aparecer muito mais tarde.

Como vários outros jovens da época, Kepler se beneficiou dos fundos dados pela Igreja protestante para que os novos pastores pudessem avançar em seus estudos. Aos treze anos, Kepler começou a frequentar um seminário teológico, onde conheceu os clássicos gregos, a matemática e a música. Seria natural esperarmos que, ao deixar a amaldiçoada casa em Weil, Kepler se sentisse um pouco melhor. Infelizmente, carregava um imenso fardo emocional dentro de si, e não fora. Seu relacionamento com os outros meninos do seminário foi terrível. Brigou com todo mundo, levou várias surras e estava sempre criando confusão. Aos dezessete anos (1588), ele se transferiu para a prestigiosa Universidade Luterana de Tubingen. Lá as coisas só pioraram. Eis aqui uma seleção das memórias de Kepler de seus tempos de estudante:

“Fevereiro de 1586: eu sofri terrivelmente e quase morri. A causa foi minha desonra por ter denunciado meus colegas de escola […] 1587: no dia 4 de abril caí enfermo por um bom tempo. Após minha recuperação, ainda estava sendo odiado pelos meus colegas, devido a uma briga no mês anterior. Koellin era meu amigo; levei uma surra do Rebstock quando estávamos bêbados; várias brigas com Koellin […] 1590: finalmente me tornei bacharel. […] Tinha muitos inimigos em meio aos meus colegas.”

Mas ele sabia que a culpa era muitas vezes sua. Num de seus vários ensaios autocríticos, Kepler escreveu sobre sua “raiva, intolerância e grande paixão por chatear e provocar outras pessoas […]”. Escrevendo na terceira pessoa, ele chegou até a se comparar com um cachorro:

“Aquele homem [Kepler] tem realmente a natureza de um cachorro. Ele até se parece com um cão fraldeiro […] adora roer ossos e cascas secas de pão […] Seus hábitos também são similares: sempre tenta bajular as pessoas a sua volta, dependendo delas para tudo, satisfazendo todos os seus desejos, nunca se enraivecendo quando elas o criticam e fazendo de tudo para ser amado novamente” […]

Aos vinte anos Kepler terminou seus estudos em Tubingen. Continuando sua trajetória para se tornar sacerdote, matriculou-se na Faculdade Teológica. Se Kepler não era muito popular entre seus colegas de classe, ele certamente era popular entre alguns de seus professores. Dentre eles, Michael Mastlin viria a se tornar uma influência importante. Mastlin foi um dos astrônomos que atacou a divisão aristotélica do cosmo em dois domínios, ao mostrar que o grande cometa de 1577 estava com certeza além da esfera lunar (de acordo com Aristóteles, a mutação só era possível abaixo da esfera lunar. Portanto, os cometas eram considerados como sendo fenômenos atmosféricos raros. O mesmo se dava com os meteoros, o que explica por que o estudo do clima ficou conhecido como meteorologia). Possivelmente devido aos ensinos de Mastlin, Kepler se tornou um defensor das ideias de Nicolau Copérnico enquanto ainda em Tubingen.

Mesmo assim, ele continuava seguindo sua carreira de sacerdote. Uma brusca mudança em seu futuro pegou o próprio Kepler de surpresa. Em 1594, ele foi recomendado por seus professores para substituir o professor de matemática e astronomia da escola luterana de Graz, capital da província austríaca da Estíria. Sua posição implicava não só o ensino, mas também o título de “matemático oficial” da Estíria. Como tal, Kepler tinha que preparar um calendário astrológico anual. Seu primeiro calendário foi um sucesso, prevendo tanto uma frente fria como uma invasão turca. Kepler sem dúvida era muito mais popular como astrólogo do que como professor.

A atitude de Kepler com relação à astrologia era típica de um homem vivendo em uma era de transição. Ele constantemente preparava horóscopos para suplementar seu salário, algumas vezes desprezando essa atividade, enquanto em outras confessando sua irresistível atração. Ele escreveu, alternadamente, que a astrologia é uma “terrível superstição” e uma “brincadeira sacrílega”, mas também que “nada existe ou acontece no céu que não seja percebido de algum modo secreto pelas faculdades da Terra e da Natureza”. Ou, em outra ocasião, “que o céu influencia os homens é para mim óbvio; mas o que, exatamente, ele faz permanece um mistério”. Em outras palavras, Kepler acreditava em alguma causa física por trás do suposto sucesso da astrologia. Mesmo que essas ideias possam parecer-nos um pouco inocentes, elas representam um modo completamente novo de interpretar os fenômenos celestes. Por trás dos fenômenos naturais, sejam eles ligados à astrologia ou à astronomia, existe uma causa que pode ser estudada racionalmente. Em sua busca dessa causa, Kepler irá Introduzir a física no estudo do cosmo, inaugurando uma nova era em astronomia.

A grande ideia que iria transformar a vida de Kepler surgiu, inesperadamente, durante uma de suas aulas. Antes de sua mudança para Graz, o interesse de Kepler no sistema copernicano era motivado por sua atração mística pela ideia do Sol como centro do Universo. Qualquer outro arranjo lhe parecia absurdo. Mesmo que o sistema heliocêntrico lhe fosse atraente, vários outros mistérios cósmicos continuavam em aberto, como, por exemplo, o número de planetas no sistema solar. Por que cinco e não cinquenta ou dez? Essa questão intrigava-o profundamente. Será que existia alguma simetria secreta no Universo capaz de explicar esse número? (Hoje sabemos que fora os cinco planetas visíveis a olho nu, existem três outros – na época de Kepler a lista terminava em Saturno). E as distâncias relativas entre os planetas? Que mecanismo poderia explicá-las? Embora os esforços iniciais de Kepler não tenham rendido muitos frutos, essas questões devem ter permanecido bem vivas no seu inconsciente, porque, durante uma aula sobre as conjunções astrológicas de Júpiter e Saturno para uma meia dúzia de estudantes sonolentos, a solução subitamente explodiu na mente de Kepler. Mais tarde ele escreveu sobre esse momento: “Eu jamais poderei descrever com palavras a felicidade que me invadiu quando me deparei com minha descoberta”.

A resposta era a geometria. Kepler sabia que existiam apenas cinco “sólidos platônicos”, os únicos sólidos regulares que podem ser construídos em três dimensões. Eles são descritos como sólidos “perfeitos” porque todas as suas faces são idênticas. O tetraedro é construído a partir de quatro triângulos equiláteros; o cubo, a partir de seis quadrados; o octaedro, a partir de oito triângulos equiláteros; o dodecaedro, a partir de doze pentágonos; e o icosaedro, a partir de vinte triângulos equiláteros. Nenhum outro sólido fechado em três dimensões pode ser construído com todas as faces iguais. Por exemplo, a bola de futebol usada na copa do mundo é construída a partir de pentágonos e hexágonos. Mesmo sendo um sólido fechado, ela não é um sólido perfeito.

Kepler descobriu que usando os sólidos platônicos ele poderia explicar não só as distâncias relativas entre os planetas mas também o número de planetas no sistema solar. Sua ideia genial era arranjá-los concentricamente, uns dentro dos outros, como matrioshkas, aquelas bonecas russas tradicionais. Por causa da alta simetria dos sólidos perfeitos é possível inscrever uma esfera no interior de cada sólido, de tal forma que a superfície da esfera toque a parte interna das faces do sólido. (Pense numa bola dentro de um cubo.) Do mesmo modo, é possível circunscrever uma esfera em torno de cada sólido, de tal forma que a superfície interior da esfera toque a parte externa do sólido. (Pense num cubo dentro de uma esfera.)

Alternando sólido-esfera-sólido etc., Kepler construiu um modelo geométrico do Universo no qual cada esfera representava uma órbita planetária, enquanto entre cada duas esferas residia um sólido platônico. As distâncias entre os planetas era automaticamente fixada pelo modo como os sólidos se encaixavam dentro das esferas. E, como só existem cinco sólidos perfeitos, o esquema de Kepler só podia acomodar seis esferas, explicando o número de planetas no sistema solar. No centro do arranjo, o Sol reinava supremo. Caso Kepler soubesse da existência dos outros três planetas, seu esquema seria inútil. Mas sua ignorância foi sua bênção: ao tentar realizar seu sonho pitagórico, mais tarde ele iria descobrir as leis matemáticas que governam os movimentos planetários, que, aliás, funcionam de modo igualmente bom para os planetas que Kepler não sabia existirem.

O mais fantástico, quase milagroso, é que seu esquema funcionou. Bem, quase funcionou. O arranjo de Kepler “descrevia” o modelo de Copérnico, ou seja, previa as distâncias relativas entre os planetas com uma acurácia de aproximadamente cinco por cento. Mas a beleza e simplicidade do esquema, aliadas ao seu grande poder de “responder” a algumas das questões mais fundamentais sobre a estrutura do cosmo, seduziram Kepler completamente. A geometria era a chave para resolver os mistérios do Universo. Mais uma vez, a tradição pitagórica desvendou os segredos da mente do Arquiteto Cósmico. E Kepler, o pequeno cão fraldeiro, foi a ponte. Seu esquema era óbvio, simples, a única solução possível. E, é claro, seu esquema era completamente absurdo.

Embora errada, e fisicamente insustentável, essa visão geométrica do cosmo iria dominar o pensamento de Kepler pelo resto de sua vida, tornando-se sua musa fundamental, a expressão máxima do seu misticismo racional. No entanto, seu gênio foi muito além da simples aplicação de ideias pitagóricas. À inspiração vinda dos gregos ele adicionou dois dos mais importantes aspectos da ciência moderna: primeiro, que as teorias devem acomodar os dados experimentais, e não o oposto; segundo, que as teorias descrevendo fenômenos naturais devem ser físicas, ou seja, elas devem revelar as causas por trás do comportamento observado. É aqui que Kepler rompe radicalmente com o passado. Inspirado por sua visão catártica de harmonia celeste, ele irá obter as primeiras leis matemáticas descrevendo o movimento dos planetas. Sua busca da harmonia não era apenas estética. Ela era também quantitativa, alimentada por observações.

Após trabalhar freneticamente por alguns meses, em 1596 Kepler publicou sua primeira grande obra, o Mysterium cosmo-graphicum, Mistério cosmográfico”. Essa foi a primeira defesa aberta do sistema copernicano, 53 anos após a publicação de Sobre as revoluções, de Copérnico. A revolução copernicana certamente começou bem devagar. Nesse tratado, Kepler explica como os cinco sólidos platônicos descrevem a estrutura do cosmo, adicionando aqui e ali elementos de misticismo cristão e explicações bem simplistas das possíveis causas físicas dos movimentos planetários. Sem dúvida, o resultado final foi um tratado como nenhum outro jamais escrito, uma mistura de filosofia, numerologia, teologia cristã e física rudimentar.

Kepler acreditava que o cosmo era uma manifestação da Santíssima Trindade. Deus era representado pelo Sol no centro, o Filho, pela esfera das estrelas fixas, e o Espírito Santo, pelo poder que emana do Sol, responsável pelos movimentos celestes, permeando todo o Universo. Ele era a “alma motriz”, o poder divino capaz de gerar movimento. Nas palavras de Kepler:

“ou a atividade das almas responsáveis pelo movimento dos planetas diminui com a distância do Sol, ou existe apenas uma alma responsável por todos os movimentos residindo no Sol, cujo poder aumenta com a proximidade dos planetas”.

Os planetas externos (Marte, Júpiter e Saturno) movem-se mais devagar porque esse poder “diminui em proporção inversa à distância, do mesmo modo que a força da luz”. Mais tarde, Kepler irá substituir a ideia de alma pela ideia de força. Essa é a primeira vez que a física e a astronomia se encontram. Embora as ideias de Kepler sejam incorretas, o fato de ele tentar achar uma causa por trás dos fenômenos celestes é, por si só, notável. Com sua brilhante intuição, Kepler quase descobriu o conceito de força gravitacional, E ele chegará ainda mais perto em seu livro seguinte, intitulado apropriadamente de Astronomia nova. Mas para isso serão necessários ainda mais doze anos.

No dia 28 de setembro de 1598, as autoridades católicas, representando a Contra Reforma, ordenaram que todos os professores luteranos deixassem Graz. Devido à sua fama, Kepler gozava de alguns privilégios que lhe garantiam certa imunidade, embora soubesse que seus dias em Graz estavam contados e que precisaria achar outra posição. Em fevereiro de 1600, Kepler chega a Praga para trabalhar como assistente de Tycho Brahe, o maior astrônomo da época. A parceria dos dois foi desastrosa. As únicas duas coisas que Kepler e Tycho tinham em comum eram a arrogância e uma grande paixão pelas estrelas. No entanto, eles precisavam desesperadamente um do outro. Para entendermos por que, devemos voltar um pouco no tempo para conhecer a história de Tycho.

O Príncipe Astrônomo


Joergen Brahe, vice-almirante de Frederico II, rei da Dinamarca, não tinha filhos. Ele queria tanto uma criança que fez com que seu irmão, o governador de Helsingor, prometesse que ele poderia adotar seu próximo filho. Em 1546, três anos após a morte de Copérnico, a esposa do governador deu à luz meninos gêmeos. Tragicamente, um deles nasceu morto. O governador se recusou a deixar que o menino sobrevivente, Tycho, fosse adotado pelo tio. Joergen, furioso, acabou raptando o próprio sobrinho. Depois de muitas brigas e ameaças, o governador finalmente desistiu de recuperar seu filho, sabendo que, pelo menos, Tycho seria criado com toda a pompa e circunstância digna de um Brahe. E isso com certeza ele foi.

O Cao Fraldeiro, o Principe Astronomo e a Busca da Harmonia Cosmica - Tycho Brahe

Tycho Brahe. Foto: Creative Commons.

Como a maioria de seus familiares, esperava-se que Tycho seguisse a carreira diplomática. Aos treze anos, ele foi mandado para a Universidade Luterana de Copenhague para estudar filosofia e retórica. Logo após sua chegada a Copenhague, Tycho teria a experiência que iria mudar sua vida. Em 1560, ele observou um eclipse parcial do Sol. O que o maravilhou não foi só a beleza do evento, mas principalmente o fato de que os astrônomos podiam prever quando o eclipse iria ocorrer, ou seja, que era possível conhecer o curso dos céus com tal precisão. Após essa revelação, seu interesse em astronomia só iria aumentar, para o desespero de seus familiares. Aos dezesseis anos, seu tio Joergen o mandou para a Universidade de Leipzig com um tutor, Anders Vedei, cuja função era fazer que o jovem Tycho abandonasse essa inútil paixão pelas estrelas. Mas já era tarde demais. Depois de um ano descobrindo instrumentos astronômicos em vários esconderijos e flagrando Tycho na cama lendo livros de astronomia, Vedei desistiu de sua missão. Antes de seu retorno à Dinamarca em 1570, Tycho ainda passou por várias outras universidades. A essa altura, ele já tinha adquirido sua marca facial mais distinta, uma amálgama de ouro e prata que substituía parte de seu nariz, amputada em um duelo (parece que o duelo foi o resultado de uma disputa com um de seus familiares. Contudo, não se tratava de uma briga para defender a honra de uma donzela, mas para decidir qual dos dois era o melhor matemático). Com seus pequenos olhos negros, famosos pelo seu brilho sádico, seu longo e fino bigode e seu nariz dilacerado, não é exagero dizer que Tycho não era o tipo de pessoa de quem você gostaria de discordar. E seu temperamento mais do que fazia jus ao seu semblante sombrio.

Em contraste com Copérnico e Kepler, que foram levados à astronomia por razões mais filosóficas ou místicas, Tycho era um verdadeiro astrônomo observacional. Após sua emoção inicial com o eclipse solar, ele rapidamente percebeu que os dados astronômicos disponíveis na época estavam longe de ser acurados. Sua paixão por medidas de alta precisão era infinita. Ele estava sempre desenvolvendo novos instrumentos que pudessem gerar dados cada vez mais precisos. É óbvio que o fato de ele ter dinheiro suficiente para pagar por esses instrumentos lhe trazia grande vantagem. Kepler, ou até Copérnico, jamais poderia arcar com os custos envolvidos na construção de um quadrante de carvalho e bronze com um diâmetro de quase treze metros.

Tycho usou seu dinheiro sabiamente, obtendo dados astronômicos de precisão inigualável. Mais ainda, ele descobriu que, para serem úteis, as medidas das posições de objetos celestes não tinham de ser só precisas, mas deveriam também ser tomadas continuamente. Se quisermos reconstruir a trajetória seguida por um determinado planeta, temos de observá-lo com a maior frequência possível. Como uma caricatura, imagine que você tenha em suas mãos um pedaço de papel com alguns pontos espalhados, e que esses pontos representem a posição de Júpiter nos últimos três meses. Sua tarefa é reconstruir, a partir desses dados, a curva que descreve a órbita de Júpiter. Sem dúvida, se o papel tivesse sido marcado com noventa pontos (medidas diárias) em vez de doze (medidas semanais), seu trabalho seria muito mais fácil.

A fama de Tycho como astrônomo cresceu rapidamente. Ele teve a sorte de ter vivido numa época em que os céus estavam bastante irrequietos. No dia 11 de novembro de 1572, quando voltava de seu laboratório alquímico, Tycho notou a presença de uma “estrela nova” na constelação de Cassiopeia. Uma estrela nova? Certamente isso era impossível, ao menos de acordo com as ideias aristotélicas. Como mudanças podiam ocorrer acima da esfera lunar? E essa não era uma estrela qualquer, já que ela era tão brilhante que podia até ser vista durante o dia (na verdade, esta “estrela” é conhecida hoje em dia de “supernova”, uma enorme liberação de energia que ocorre quando estrelas suficientemente grandes chegam ao fim do seu ciclo de vida regular.). Usando seus instrumentos, Tycho mediu a posição do novo objeto em relação às estrelas em sua vizinhança até que ele desapareceu de seu campo de vista, em março. Sua conclusão era clara: a estrela estava mais distante do que a Lua. Mais ainda, ela também não era um cometa, já que Tycho não detectou nenhuma cauda ou movimento. Ele escreveu um livro intitulado De nova stella, Sobre a estrela nova”, no qual dava detalhes de suas observações e da construção de seus instrumentos. O livro também continha horóscopos, poemas, diários meteorológicos e correspondência relativa ao assunto. Muitos outros astrônomos escreveram sobre a “estrela nova”, incluindo Mastlin, o mentor de Kepler. Mas as medidas de Tycho eram de longe superiores a todas as outras. As rachaduras no universo aristotélico estavam se tornando cada vez mais profundas.

Cinco anos mais tarde, um cometa apareceu nos céus, o grande cometa de 1577, o mesmo visto pelo jovem Kepler. Em um outro golpe contra os aristotélicos, Tycho mostrou que o cometa estava pelo menos seis vezes mais distante da Terra do que a Lua. A partir de suas observações da estrela nova e do cometa, Tycho concluiu que as esferas celestes, tão importantes na estrutura do cosmo aristotélico, não podiam ser reais. Elas simplesmente não podiam existir, carregando planetas e estrelas em suas trajetórias celestes. Essa conclusão também contrariava o modelo copernicano, já que para Copérnico as esferas celestes eram reais. Tycho não gostava do modelo heliocêntrico de Copérnico. Como ele não conseguiu detectar a paralaxe estelar (o movimento aparente de estrelas relativamente próximas da Terra em relação ao fundo de estrelas mais distantes), acreditava que a Terra tinha que estar imóvel no centro do cosmo. E mais: ele também não gostava do sistema copernicano por motivos religiosos, já que este contrariava a Bíblia.

De forma a conciliar suas observações com seus preconceitos, Tycho propôs seu próprio modelo do cosmo, um híbrido entre um modelo puramente aristotélico e o modelo copernicano. Ele colocou a Terra no centro, com o Sol em movimento circular à sua volta, como no modelo de Aristóteles; mas, como inovação, ele colocou todos os planetas orbitando em torno do Sol, criando um modelo assimétrico do cosmo. Uma consequência óbvia desse modelo é que a órbita de Marte intercepta a órbita do Sol. Se existia alguém capaz de estilhaçar as esferas celestes, esse alguém era Tycho Brahe, com sua enorme confiança em suas observações. Embora as ideias de Tycho tenham gozado de certa popularidade, apoiadas principalmente por aqueles desesperados por salvar o universo geocêntrico a qualquer preço, elas estavam destinadas a ser o último suspiro do moribundo universo aristotélico.

Tycho era considerado um dos maiores, se não o maior, astrônomo da época. Após suas observações da supernova e do cometa, ele viajou pela Europa em grande estilo, visitando várias cortes e mostrando seus instrumentos para possíveis patronos. Frederico II, em uma tentativa meio desesperada de manter Tycho na Dinamarca, ofereceu-lhe toda a ilha de Hveen (hoje parte da Suécia), “com todos os inquilinos e servos da Coroa que lá habitem, incluindo também o aluguel e taxas pagas por eles […] pelo resto de sua vida, contanto que ele continue a se dedicar aos seus studia mathematices…”. Combinando seu caráter extravagante com seu amor pela precisão, Tycho construiu um castelo magnífico em Hveen, Uraniborg, ou “Castelo dos Céus”

O Cao Fraldeiro, o Principe Astronomo e a Busca da Harmonia Cosmica - Castelo

O castelo de Tycho Brahe. Imagem publicada em 1663 no Blaeu’s Atlas Major. Foto: Blaeu’s Atlas Major.

O castelo de Tycho era realmente um local fantástico, não só pela sua poderosa arquitetura em estilo de fortaleza, mas também pelo que podia ser encontrado em seu interior. A enorme construção era flanqueada por torres cilíndricas com tetos removíveis, onde Tycho guardava seus instrumentos. Na biblioteca, Tycho colocou um globo de bronze com quase dois metros de diâmetro, onde ele e seus assistentes gravavam as estrelas após medirem suas posições. Várias galerias continham inúmeros objetos mecânicos, incluindo estátuas móveis e sistemas secretos de comunicação ligando diferentes partes do castelo. As paredes eram adornadas com desenhos e epigramas preparados pelo próprio Tycho. Na sua sala de trabalho, ele pendurou os retratos dos oito maiores astrônomos de todos os tempos, que incluíam não só o próprio Tycho, como também “Tychonides”, seu descendente ainda por nascer, que sem dúvida iria trazer grandes contribuições à astronomia.

No porão, Tycho tinha sua própria fábrica de papel e máquina de impressão, um laboratório de alquimia e um calabouço, que ele usava para aterrorizar seus inquilinos. Tycho governava Hveen como um tirano, intolerante e arrogante com seus criados e exuberante com seus convidados. Tinha até um “bobo da corte”, um anão chamado Jepp, que podia ser encontrado sob a cadeira de Tycho durante banquetes, tagarelando sem parar e esperando que seu mestre lhe atirasse alguns restos de comida. Várias pessoas ilustres visitaram Tycho em Uraniborg, incluindo Jaime VI, rei da Escócia. Sem dúvida, nenhum outro centro de pesquisas astronômicas da história pode se comparar ao castelo de Tycho.

A festa não poderia durar para sempre. Após a morte de Frederico II em 1588, a exuberância de Uraniborg começou a entrar em declínio. Seu sucessor, Cristiano IV, não gostava nem um pouco da arrogância e dos modos tirânicos de Tycho. Sua renda sofreu um drástico corte, e em 1597 Tycho deixou Hveen com todo seu séquito, incluindo seus instrumentos, assistentes e o anão Jepp. Após dois anos de peregrinações, Tycho aceitou uma oferta do imperador Rodolfo II para se tornar seu “imperial mathematicus. A oferta, é claro, incluía um excelente salário e o castelo de Benatek, perto de Praga. É em Benatek que Tycho e Kepler irão finalmente se encontrar.

A busca da harmonia cósmica


Com a expulsão de todos os clérigos e professores luteranos da Estíria em 1598, Kepler perdeu seu emprego. Mesmo gozando de alguma imunidade contra perseguições religiosas, sua vida em Graz estava se tornando insuportável. Para complicar ainda mais as coisas, a essa altura Kepler não estava sozinho. Cedendo à constante pressão de seus amigos, em abril de 1597, “sob céus calamitosos”, Kepler casou-se com Barbara Muehleck, filha de um rico comerciante, viúva duas vezes aos 22 anos. Sobre Frau Barbara Kepler, escreveu que “sua mente era limitada, e seu corpo, obeso”, e que tinha um semblante “estúpido, deprimido, solitário e melancólico”. Acho que é fácil concluir que Kepler não era um homem muito feliz em seu casamento. Ele constantemente reclamava da ignorância de sua mulher, da sua falta de interesse em seu trabalho e da sua mesquinharia. Em defesa de Frau Barbara, imagino que Kepler não devia ser uma pessoa muito agradável de se conviver, ou por quem fosse fácil sentir atração física. Fora suas horrendas feridas e vermes nos dedos, parece que ele tomou apenas um banho em toda sua vida. E, mesmo assim, ele reclamou que o banho o deixou doente por dias. O casamento durou catorze anos, até a morte de Barbara, aos 37 anos. Das suas cinco crianças, apenas duas sobreviveram. As duas primeiras morreram quando eram bebês, enquanto o filho predileto de Kepler, Friedrich, morreu ainda menino. A tragédia seguia Kepler tão obstinadamente quanto a sua própria sombra.

Tycho foi um dos poucos astrônomos da época que reconheceu o gênio de Kepler por trás da nebulosa mistura de ciência e misticismo do Mysterium. Ele precisava de assistentes para ajudá-lo em suas observações, pois, após anos de muitos banquetes, festas e vinho, sua saúde estava começando a deteriorar. Ele tinha os melhores dados astronômicos jamais coletados na história e os tijolos necessários para a construção de um novo modelo do cosmo, mas não possuía o talento do arquiteto para desenhar sua nova estrutura. Secretamente, Tycho depositava em Kepler sua esperança de ver justificado o trabalho de toda uma vida. De início, Tycho convidou-o informalmente para uma visita; mas, em dezembro de 1599, Tycho fez a Kepler um convite formal para juntar-se ao seu grupo em Benatek:

“Espero que você aceite meu convite, não forçado por adversidades causadas por circunstâncias externas, mas pelo desejo de trabalharmos juntos. Qualquer que seja sua razão, você encontrará em mim um amigo que não lhe negara conselho e ajuda em tempos de dificuldade. Se você vier o mais rápido possível, nós encontraremos os meios para que você e sua família gozem de maior conforto no futuro.”

Com certeza, Tycho estava a par dos acontecimentos na vida de Kepler. Quando a carta-convite finalmente chegou a Graz, Kepler já havia partido em direção a Benatek. Lá, o cão fraldeiro e o príncipe astrônomo iriam passar dezoito meses em constante estado de guerra, com Kepler reclamando das péssimas condições de trabalho e de seu baixo salário, enquanto o distante Tycho não agia da maneira amistosa e carinhosa que sua carta parecia indicar. Ambiguamente, Tycho não queria compartilhar seus dados com Kepler. Como ele, o astrônomo de reis, podia dar os frutos de toda uma vida de trabalho para esse desconhecido plebeu a seu lado? Kepler gritava e esperneava, no seu estilo inigualável. Após terríveis discussões e explosões de raiva, Kepler ameaçava deixar Benatek, só para voltar momentos depois com o rabo entre as pernas, desculpando-se profusamente.

Tycho, contudo, sabia que não tinha escolha. Finalmente, ele pediu que Kepler estudasse a órbita de Marte, um problema notoriamente difícil. Tycho sabia muito bem que a órbita de Marte, com sua grande excentricidade, é muito traiçoeira. Mas Kepler, com sua falta de modéstia usual, disse que em apenas oito dias o problema estaria resolvido. No final, foram quase oito anos de trabalho duríssimo antes que ele pudesse desvendar o mistério da órbita de Marte. Mas, depois disso, a astronomia jamais seria a mesma. Ao conquistar o planeta guerreiro, o cão fraldeiro fundou uma nova astronomia.

Tycho não viveu o suficiente para ver sua obra imortalizada. No dia 13 de outubro de 1601, ele participou de um banquete no castelo do ilustre barão Rosenberg, e, como era seu costume, bebeu abundantemente durante toda a noite. Ao invés de aliviar-se de vez em quando, Tycho não queria deixar a mesa de jantar. Para ele, a etiqueta era mais importante do que suas funções fisiológicas, que podiam esperar. E, enquanto o barão permanecia sentado, ninguém podia deixar a mesa. Apesar de sua bexiga estar bem dilatada, Tycho não parou de beber. Ao chegar em casa, ele não conseguia mais urinar. Após onze dias sofrendo de febres altíssimas e de uma terrível dificuldade para urinar, Tycho morreu, envenenado pelos seus próprios excessos. No seu leito de morte, tomado por um delírio febril, ele pedia a Kepler: “Faça com que minha vida não tenha sido em vão. Faça com que minha vida não tenha sido em vão…”.

Dois dias após a morte de Tycho, Kepler foi nomeado novo matemático imperial. Embora seu salário fosse irrisório em comparação com o de Tycho, Kepler não estava preocupado com esse detalhe. Ele mergulhou em seu trabalho, dividindo seu tempo entre o desafio de Marte e a óptica instrumental, outro campo onde foi um dos pioneiros. Mas Marte se recusava a colaborar. Inicialmente, Kepler ressuscitou a ideia do equante em um modelo heliocêntrico, misturando Ptolomeu (equante) e Copérnico (heliocentrismo).

Com essa ideia, ele obteve uma concordância entre seu modelo e as observações de Tycho, com uma precisão de oito minutos de um grau. Esse acordo era muito melhor do que qualquer outro modelo desenvolvido antes de Kepler. A maioria das pessoas ficaria radiante com esse resultado e tiraria férias bem merecidas. Mas a confiança de Kepler nos dados de Tycho era tamanha que ele sabia que poderia obter resultados ainda melhores. Aquela não era a hora de desistir.

Kepler não estava apenas tentando descobrir a forma da órbita de Marte; ele também estava buscando as causas físicas dos movimentos planetários. No Mysterium, Kepler propôs uma espécie de poder anímico emanado do Sol como o responsável pelas órbitas planetárias. Armado com novas ideias vindas da Inglaterra, Kepler irá substituir a alma pelo magnetismo. William Gilbert, médico da corte de Elisabete I, escreveu um livro em 1600, no qual explorava vários aspectos dos fenômenos magnéticos. Em particular, Gilbert demonstrou que a Terra funciona como um gigantesco magneto. Essa ideia fascinou Kepler. Se a Terra é um gigantesco magneto, por que não o Sol e os outros planetas? Em 1605 ele escreveu:

“Eu tenho estado muito ocupado com a investigação das causas físicas. Meu objetivo aqui é mostrar que a maquina celestial não deve ser comparada com um organismo vivo, mas sim com os mecanismos de um relógio […], de tal modo que os vários movimentos celestiais são causados por uma simples força magnética, como no caso dos movimentos de um relógio, que são causados por um peso. Mais ainda, eu mostro como essa ideia pode ser implementada através de cálculos e da geometria.”

Essas são palavras verdadeiramente proféticas. De fato, quando a física newtoniana atingiu seu apogeu, no século XVIII, o Universo foi transformado num mecanismo de um relógio. É essa maneira completamente nova de pensar que faz com que Kepler seja considerado como um verdadeiro revolucionário. Seu feito é ainda maior quando entendemos que ele estava completamente sozinho e não tinha predecessores. Seus métodos talvez fossem primitivos, já que ele não dispunha de uma metodologia experimental, que estava sendo desenvolvida por Galileu por volta da mesma época. Sua conclusão – de que a força diminuía de intensidade de modo inversamente proporcional à distância – estava errada, mas sua intuição era brilhante. Quando juntou os dados precisos de Tycho com sua ideia de uma força central emanando do Sol, Kepler descobriu o que hoje estudamos no ensino médio e chamamos de segunda lei de Kepler do movimento planetário”:

“A linha imaginária ligando o Sol aos planetas cobre áreas iguais em tempos iguais”.

Essa lei expressa o fato de que, numa órbita assimétrica, o planeta se moverá mais rapidamente quanto mais próximo estiver do Sol; se a órbita fosse um círculo, a velocidade do planeta seria sempre a mesma.

O problema agora era achar a forma correta da órbita. Ele brincou com várias alternativas, incluindo epiciclos, órbitas em forma de ovo e outros tipos de curvas ovais. A certa altura, ele havia produzido 51 capítulos, com centenas de páginas cobertas de cálculos de cima a baixo, e ainda assim não conseguia desvendar o mistério de Marte. Kepler tinha um prazer masoquista de dar ao leitor detalhes de todos os caminhos errados que tomara enquanto lutava com seus problemas. Se seus escritos não são muito leves ou breves, ao menos servem de excelente material no estudo dos mecanismos elusivos da criatividade científica. Por fim, Kepler decidiu que as órbitas planetárias têm a forma de uma elipse. E isso após haver descartado essa ideia, pois ela não satisfazia sua hipótese magnética. Mas, para Kepler, o mais importante era que elipses descreviam os dados de Tycho com uma precisão excelente. Finalmente o mistério era desvendado! E assim nasceu a “primeira lei de Kepler do movimento planetário”:

Os planetas giram em torno do Sol em órbitas elípticas, com o Sol ocupando um de seus focos”.

As duas leis de Kepler, imersas em um mar de cálculos, apareceram em seu livro Astronomia nova, em 1609. O título completo do livro é Uma nova astronomia baseada nas causasou uma “‘física dos céusderivada das investigações dos movimentos da estrela Marte, fundada nas observações do nobre Tycho Brahe. O livro inclui também os esforços de Kepler para entender as causas das marés e, é claro, a força da gravidade. Astronomia nova é, sem dúvida, uma obra magnífica, representando o esforço de uma mente pioneira para compreender os movimentos celestes nos termos de apenas uma lei universal, um objetivo finalmente atingido por Isaac Newton mais de 100 anos depois. No entanto, os primeiros passos foram dados por Kepler. Conforme escreveu o historiador da ciência Gerald Holton, “sua premonição da gravitação universal decerto não foi um exemplo isolado de adivinhação ou sorte”.

Em Astronomia nova, Kepler finalmente põe o Sol no verdadeiro centro do cosmo; o Sol é a fonte de todos os movimentos planetários. Mas, para Kepler, o Sol era muito mais do que isso: ele era o trono de Deus, Seu poder permeando o sistema solar. O sistema de Kepler não era apenas heliocêntrico; ele era também teocêntrico. Como notou Holton, o Sol tinha três papéis complementares no Universo de Kepler: o de centro matemático das órbitas planetárias, o de centro físico, garantindo a continuidade dos movimentos orbitais, e o de centro metafísico, o templo da Divindade.  O cosmo de Kepler mostra o quanto sua criatividade científica era motivada por um profundo instinto religioso.

A publicação da Astronomia nova foi em si uma batalha, devido a várias disputas com os herdeiros de Tycho. Após a impressão do livro, a vida de Kepler caiu novamente num caos completo. O poder e a saúde mental do imperador Rodolfo II estavam em franco declínio, e, por fim, em 23 de maio de l6l1, ele abdica de seu trono em favor de seu irmão, Matias II. Friedrich, o filho querido de Kepler, morre no mesmo ano, e Frau Barbara morre no início de 1612. A situação política e religiosa transformou Praga numa cidade perigosa e instável para se viver ou trabalhar. Em seis anos, Praga seria o berço da sangrenta Guerra dos Trinta Anos, a primeira guerra que envolveu praticamente toda a Europa, provocada pelas disputas de poder entre a nobreza católica e a nobreza protestante. Mais uma vez, Kepler estava no meio de um cabo-de-guerra religioso que iria transformar a Europa num vasto campo de batalha. Ele se muda de Praga para Linz, capital da parte norte da Áustria, onde irá passar os próximos catorze anos de sua vida. Lá, ele finalmente encontra a paz necessária para se concentrar na sua obsessão pitagórica, a busca da harmonia universal.

Seu livro Harmonice mund (Harmonias do mundo), foi concluído em 1618. Kepler volta à sua ideia de sólidos platônicos concêntricos, introduzida no Mysterium 21 anos antes. Ele dividiu o livro em cinco partes. As duas primeiras lidam com o conceito de harmonia em matemática, e as outras três, em música, astrologia e astronomia. Kepler ressuscitou a ideia pitagórica de harmonia, vestindo-a de uma linguagem geométrica mais sofisticada. A harmonia se manifesta quando à nossa percepção de ordem, na Natureza se contrapõem simples arquétipos geométricos, numa ressonância entre as experiências sensoriais; e racionais. Para Kepler, esse é o princípio unificador que descreve não só os movimentos celestes, mas também o comportamento humano, as mudanças climáticas, a beleza da música. Essa harmonia completamente abrangente que percebemos no mundo é uma manifestação direta da mente divina. Em outras palavras, essa harmonia é a ponte entre o ser e o devir.

Entretanto, a situação havia mudado consideravelmente desde que Kepler completara o Mysterium. As órbitas planetárias não eram circulares, mas elípticas, e os dados de Tycho forneciam um retrato acurado dos céus. Kepler tinha que incluir toda essa nova informação em seu antigo esquema. Após muitas tentativas frustradas, Kepler encontrou afinal uma solução que o satisfez profundamente. Ele sabia que, com órbitas elípticas, a velocidade de um planeta é maior quanto mais próximo ele estiver do Sol. A chave para a harmonia celeste estava em estabelecer a razão entre os valores máximos e mínimos das velocidades orbitais. Kepler comparou esses números com os obtidos nas escalas musicais, chegando a um acordo bastante satisfatório. Portanto, concluiu Kepler, Saturno correspondia a uma terça maior, Júpiter, a uma terça menor, Marte, a uma quinta etc. Ele finalmente desvelou a estrutura da música celestial ouvida por Pitágoras mais de dois mil anos antes! (ele insistia que a música celeste não era para os ouvidos, mas para o intelecto) A composição final ficou ainda mais complexa quando Kepler combinou entre si as velocidades de diferentes planetas. Os planetas cantavam, juntos, um moteto celebrando a ordem divina. Kepler via na invenção da música polifônica uma tentativa dos homens de se aproximarem de Deus:

“A humanidade quis, durante uma breve hora, reproduzir a continuidade do tempo cósmico, através de uma combinação artística de várias vozes, para ter uma ideia do prazer do Criador Divino em Seus trabalhos e também para compartilhar de Seu júbilo criando música como Ele.”

O poder sedutor da música celeste, com sua beleza ao mesmo tempo divina e intangível, inspirou vários poetas do século XVII. Tanto em Shakespeare como em Milton podemos sentir a frustração causada por não podermos ouvir a música divina.

Para Kepler, todavia, achar a chave da harmonia celeste não era o bastante. Ainda faltavam algumas peças do quebra-cabeça. As relações harmônicas dependiam das variações nas velocidades orbitais dos planetas, mas não diziam nada sobre suas distâncias ao Sol. Se o Sol era o trono central da ordem cósmica, então deveria existir uma relação entre o período orbital do planeta (o tempo que o planeta leva para completar uma órbita em torno do Sol) e sua distância ao Sol. De alguma forma, tempo e espaço deveriam estar ligados pelo poder emanado do Sol. Após muitas tentativas, Kepler obteve sua terceira lei do movimento planetário”: ”O quadrado do período orbital de um planeta é proporcional ao cubo de sua distância mediana ao Sol” (como o planeta gira em torno do Sol em uma órbita elíptica, a distância do planeta ao Sol varia entre uma separação máxima, conhecida como afélio, e uma separação mínima, o periélio. A distância mediana é a média entre as duas.) A relação encontrada por Kepler estava em total acordo com os dados de Tycho. Será nessa lei que Isaac Newton irá mais tarde encontrar a chave para desvendar o mistério da gravitação universal. Newton conseguiu destilar as três leis do movimento planetário a partir da confusa mistura entre fantasia e ciência tão típica dos escritos de Kepler. Sob um ponto de vista moderno, as três leis constituem a parte mais importante do legado científico de Kepler. Mas, para Kepler, elas não passavam de alguns dos tijolos usados na construção de seu vasto edifício intelectual. Sua inspiração não veio da busca de leis específicas, mas de sua crença obsessiva na geometria como o dialeto comum entre a mente humana e a divina. Esse é um tema que ainda hoje tem um papel muito importante na criatividade científica, embora “Deus” seja em geral substituído por “Natureza”.

A descoberta da terceira lei marcou o clímax da carreira criativa de Kepler. No entanto, ele não parou aí. Durante os últimos doze anos de sua vida, sempre lutando contra guerras, doenças e tragédias pessoais, Kepler conseguiu ainda produzir várias obras, duas delas de grande importância. Em 1621, ele completou sua obra mais longa, a Epitome da astronomia copernicana, a exposição astronômica mais detalhada desde o Almagest de Ptolomeu. Embora tenha sido posto quase que imediatamente no índice dos livros proibidos pela Igreja católica, o livro tornou-se o texto mais popular em astronomia nos cem anos seguintes. Em 1627, após anos peregrinando de cidade em cidade e procurando um editor de confiança, Kepler imprimiu suas Tabelas rudolfinas, que incluíam o catálogo de Tycho com as posições de 777 estrelas (aumentado para 1005 por Kepler), e várias tabelas e regras para a determinação das posições planetárias.

A essa altura Linz também já estava sendo destruída por sangrentas revoltas incitadas pela Contra Reforma, e acabou tornando-se inabitável para protestantes. Kepler recusou ofertas de ir para a Itália e para a Inglaterra: “Será que devo aceitar o convite de Wotton [enviado de lorde Bacon, da Inglaterra] e me mudar? Eu, um alemão? Eu, que adoro o continente e que tremo diante da ideia de viver numa ilha de fronteiras estreitas, onde posso pressentir os vários perigos que me esperam?”. Após anos de perseguição religiosa, guerras e doenças, a paranoia de Kepler é mais do que justificada.

Ele terminou indo para Sagan, na Silésia (hoje em dia ocupando a parte Sudoeste da Polônia), sob os auspícios de Albrecht von Wallenstein, duque de Friedland e Sagan, o general mais poderoso do sagrado imperador romano Ferdinando II. Kepler era um matemático luterano numa corte católica. Seu salário, que ele não recebia havia anos, deveria ser pago pelo duque. É claro que Kepler nunca viu a cor desse dinheiro. Embora sua fama tenha sido grande, sua carteira estava sempre vazia. Ele passou dois anos em Sagan, a maior parte desse tempo procurando novamente um editor. Sua saúde, que nunca foi seu ponto forte, começou a piorar. Mas Kepler jamais sossegava, parecendo-se, como comentou Koestler, mais e mais com o legendário Judeu Errante (num de seus delírios hipocondríacos, Kepler escreveu a Mastlin dizendo que ele tinha uma ferida em seu pé em forma de cruz, a marca do Judeu Errante).

Wallenstein foi despedido pelo imperador, e Kepler teve de se mudar novamente, pela última vez em sua vida. Ele viajou até Leipzig num cavalo magro e velho, e de lá até Regensburg, para exigir seu dinheiro da falida Dieta imperial. Após três dias caiu doente, sofrendo de uma febre altíssima. De acordo com uma testemunha local, em seu delírio tudo que ele fazia era “apontar seu dedo indicador ora para sua testa, ora para o céu”.  Kepler morreu no dia 15 de novembro de 1630 e foi enterrado num cemitério local. Como última ironia do destino, seu túmulo foi destruído durante a Guerra dos Trinta Anos, e seus restos mortais, condenados a errar para sempre. Contudo, seu epitáfio, de sua própria pena, sobreviveu:

Eu medi os céus, agora, as sombras eu meço.

Para o firmamento viaja a mente, na terra descansa o corpo.

O Cao Fraldeiro, o Principe Astronomo e a Busca da Harmonia Cosmica - LivroTitulo: A Dança do Universo

Gênero: Ciências exatas/Astronomia

Autor: Marcelo Gleiser

Lançamento: 1997

Editora: Companhia das Letras

Obs.: O texto acima foi retirado do livro A Dança do Universo, do físico brasileiro Marcelo Gleiser. O livro venceu o Prêmio Jabuti 1998 de Melhor Ensaio e Biografia.

Sinopse: O que aconteceu no momento da Criação? Houve um minuto determinado em que o Universo que nos rodeia surgiu? Essas são questões tão antigas como a própria humanidade. Muitos procuram a resposta nos mitos e na religião. Outros nas teorias científicas. Em A dança do Universo, o físico Marcelo Gleiser mostra em linguagem clara que esses dois enfoques não são tão distantes quanto imaginamos, apresentando versões de diversas culturas para o mistério da Criação, até desembocar na explicação da ciência moderna para o surgimento do Universo.

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