Reportagem Retrô é uma coluna do blog O Aprendiz Verde que traz reportagens, matérias e artigos antigos publicados em algum lugar do nosso tempo-espaço. Trazer essas matérias é uma forma de resgatarmos o passado, e por um instante ter um vislumbre daquele registro de época.
A reportagem retrô de hoje foi publicada na Revista Veja em 13 de julho de 1977, e é sobre o caso do parricida Pierre Rivière.
Folheto Assassino
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Publicado na Revista Veja, edição de 13 de julho de 1977
Por volta do meio-dia de 3 de junho de 1835, na localidade de Aunay, França, o camponês Pierre Rivière, de 20 anos, assassinou a golpes de foice sua mãe, grávida de seis meses, sua irmã de 18 anos e seu irmão de 8.
“Acabo de livrar meu pai de todas as infelicidades”, disse ele às estarrecidas testemunhas do crime, que correram à sua casa aos primeiros gritos das vítimas.
“Sei que me matarão, mas isso não me importa”.
Preso um mês depois, julgado e condenado à morte no ano seguinte, e finalmente indultado pelo rei Luiz Filipe, que o confinou pelo resto da vida a um asilo de doentes mentais, Pierre Rivière fez de sua vida um caso exemplar.
É em torno de sua curta e sombria existência que se aglutinam os textos reunidos por Michel Foucault e dez outros pesquisadores franceses, debruçados sobre o processo 2 U 907, do Tribunal do Júri de Calvados, para desvendar-lhe os aspectos secretos. Da cirurgia a que são submetidos os laudos de médicos e juízes que opinaram e julgaram o caso Rivière emerge um formidável confronto de discursos: é a psiquiatria tradicional em oposição à nova, são ambas em confronto com o poder judiciário, e o consenso geral contra todas elas. Acima de tudo, porém, o discurso mais extraordinário, do próprio Rivière, atordoa e desconcerta ainda hoje. Escrito “em estilo grosseiro, pois apenas sei ler e escrever”, nas palavras do autor, o memorial permite que dele se tire tanto a prova da loucura do jovem assassino (e por isso ele deve ser encarcerado para sempre) como também da sua lucidez (e daí condená-lo à morte).
“O texto de Rivière não é confissão nem defesa, mas elemento do crime”, comenta Foucault. Por isso, justamente, ele o chama nada menos de “folheto assassino”.
Vegetais, minerais – Mas que crime, exatamente, seria o de Rivière? É a esta questão básica que se remetem os atuais analistas do caso – para informar logo que o gesto furioso do filho contra a mãe ou pai era “relativamente comum” na época. Embora em seu memorial, vazado numa lógica tortuosa mas nem por isso menos clara, Rivière insista na perversidade exacerbada de sua mãe, “que espumava de ódio” contra o pai, as raízes do assassinato não se plantavam somente nesta amarga atmosfera doméstica. Naquele tempo, os médicos começavam a frequentar os campos pela primeira vez para lá descobrirem “a verdadeira universidade da miséria” – e é neste universo silencioso de infelicidade, sugado pelo fisco, pelo dono da terra e pela igreja, que vão ser gerados crimes assustadores. É a mulher do jornaleiro que não suporta os gemidos do filho faminto, sangra-o, corta e come-lhe uma coxa; é o camponês que vive no bosque como selvagem, agride uma menina e, não podendo violentá-la, abre-a com uma faca, chupa-lhe o coração e bebe-lhe o sangue.
“O povo camponês nada é”, espantam-se Jean-Pierre Peter e Jeanne Favret, dois dos pesquisadores da equipe de Foucault.
Segundo eles, as doenças do campo tomam formas estranhas – e assim se conclui, no conteúdo dos médicos, que aqueles homens ainda não o são, participando sempre um pouco do mineral, do vegetal e do animal. Filho concebido para livrar o pai do serviço militar, Pierre Rivière cresceu numa família marcada pelos sinais de idiotia e alienação. Envenenou-se entre discussões sobre dívidas, incomodou-se com a presença de qualquer espécie de fêmea, odiou em nome do pai a mãe que extorquia e tiranizava. Ao conceber o seu crime é como se tivesse decidido: que pelo menos uma vez algo seja diferente, que a existência escape da pesada mesmice de sempre. O assassinato, quem sabe, talvez seja algo glorioso.
Choque de poderes – Após seu banho de sangue, porém, clamou aos céus: “Monstro que sou! Desgraçadas vítimas!”
Médicos e juízes, a quem foram remetidas as complexidades do caso, não tiveram dificuldade em identificar o primeiro sinal de alienação mental numa brincadeira de criança (Rivière gostava de cortar repolhos, imaginando que fossem soldados). Para o assassino se pede a morte ou prisão – nem uma palavra se pronuncia nos severos discursos a respeito de uma eventualidade de cura. E as sumidades médicas da época, chamadas a opinar, deram seu laudo sem conhecer Rivière, inteiramente confiantes nos relatórios dos profissionais de província. Na verdade, estes sábios se mobilizaram em torno do assassino, que nunca viram, por um único motivo – faziam uma demonstração de poder.
Chamando a si a responsabilidade de reformar sentenças, de decidir sobre a sanidade e a loucura, o certo e o torto, a nascente psiquiatria tomou de assalto um terreno que nos anos seguintes consolidaria com força às vezes brutal.
Quebrando as algemas – Na notável documentação da época, que ocupa dois terços do volume, todos esses conflitos estão patentes na hidrófoba prosa dos jornais, nos folhetos populares que contam à sua maneira deformada a tragédia de Rivière, nos laudos médicos e jurídicos que descrevem sucessivamente fenômenos diferentes entre si, embora baseados nos mesmos fatos. Exemplar, ainda aí, é o papel ocupado pelo texto do próprio Rivière. Impresso propositalmente com erros tipográficos e de pontuação, como que para ressaltar a demência de quem o escreveu, ele na verdade testemunha que Rivière, ao cometer sua tríplice ação de vingança, escapou, de algum modo, de todas as algemas, sejam elas dos juízes, dos médicos ou policiais. O indulto, por obra da psiquiatria, equivale a uma recusa em ouvir seu apelo à morte – afinal, que peso poderia ter a palavra de um nativo do campo? Quando Pierre Rivière se suicidou no asilo, aos 25 anos de idade, ele fechou a última página do seu sanguinário manuscrito – e deu a mais contundente resposta ao paternalismo com que os cientistas o tratavam.
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Nota do Aprendiz: “Eu, Pierre Riviére, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão…”, assim começa o manuscrito escrito por Pierre Rivière. Nele, o assassino conta seu lado da história e ao mesmo tempo tenta justificar seu horrível ato. Encontrado por Michel Foucault, o manuscrito serviu de base para sua publicação sobre o caso Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma sœur et mon frère… Nele, Foucault e outros pesquisadores incluem reportagens de jornais da época e documentos do julgamento ocorrido em 1835, além do livro de memórias que Rivière escreveu enquanto estava na prisão. Enquanto o tribunal focou na questão se Rivière era ou não insano, Foucault procura evitar tal abordagem, reabrindo a discussão do caso e sua relevância contemporânea para o século 20. O livro apresenta três pontos de vista sobre a questão: o que deve ser feito com uma pessoa que comete um brutal e perverso crime? Foucault, então, nos apresenta um dossiê contemporâneo do caso sob o ponto de vista legal; a autobiografia escrita pelo próprio Rivière; e uma coleção de análises modernas conduzidas por membros do College de France.
Uma análise completa e acadêmica sobre o caso, feita pela professora da Unicamp Adriana Mariguela, pode ser lida neste link.
Título: Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão
Título original: Moi, Pierre Riviere, ayant egorgé ma mére, ma soeur et mon frere
Autores: Michel Focault, Blandine Barret-Kriegel, Gilbert Burlet-Torvic, Robert Castel, Jeanne Favret, Alexandre Fontana, Georgette Legée, Patricia Moulin, Jean-Pierre Peter, Philippe Riot, Maryvonne Saison
Tradução: Denize Lezan de Almeida
Revisão Técnica: Georges Lamazière
Capa: Fernanda Gomes
Editora: Graal. 1977
Download: PDF
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