Uma perna, um crime, outro assassinato sem solução

25 de outubro de 2012, um pacato cidadão caminha pelas bordas do lago municipal do município goiano de Pontalina, uma cidade a 120 km de Goiânia, pólo de confecções...
De quem é a perna?

De quem é a perna?

25 de outubro de 2012, um pacato cidadão caminha pelas bordas do lago municipal do município goiano de Pontalina, uma cidade a 120 km de Goiânia, pólo de confecções de roupas íntimas, com algumas empresas da pequena cidade até exportando para o exterior, quando vê algo brilhando e boiando nas límpidas águas do lago que refresca a cidade. Um olhar mais apurado revela o pior dos pesadelos.

Logo a polícia civil da cidade cercava a área e curiosos se acotovelavam em volta para ver o “curioso objeto”. Um desses curiosos, munido do seu avançado celular, faz uma filmagem do macabro evento que, claro, tornou-se o assunto principal da cidade.

De quem é a perna? De quem? Obviamente que os populares da cidade estavam vendo uma perna humana, e se era uma perna humana, ela pertencia a alguém, e se pertencia a alguém, e esse alguém foi separado dela, então provavelmente estamos falando de um assassinato. Bombeiros vasculharam o lago, mas nada de encontrar o resto do corpo. A perna foi enviada para o IML de uma cidade vizinha e o caso ficou por isso mesmo.

Seis meses depois, os pontalinenses continuam com suas pacatas vidas, eu continuo escrevendo, o Sarney continua recebendo sua polpuda aposentadoria, você continua compartilhando frases de amor no Facebook, seu vizinho continua teimando em deixar o som em volume máximo escutando Amado Batista… todos nós continuamos nossas vidas tranquilas. Bom, todos menos o dono da perna. Aliás, de quem é a perna?

Se você nunca ouviu falar desse insólito evento, então é bem possível que este crime (?) nunca seja solucionado. Digo isso porque se a mídia não fala nada, então não tem porque as autoridades pressionarem para que o caso seja resolvido. O que você lerá abaixo pode te espantar mas, acreditem, de cada 100 assassinatos cometidos no Brasil, no máximo, NO MÁXIMO, 8, são solucionados. É, parece que nossos problemas não se restringem apenas em pedir transporte público de graça.

Brasil, o paraíso dos assassinos

“O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em pesquisas realizadas, inclusive a realizada pela Associação Brasileira de Criminalística, 2011, que varie entre 5% e 8%. Esse percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de 80%.”

Captaram o que diz o trecho acima? Sim? Assustador, não? A conclusão acima, da Associação Brasileira de Criminalística e publicada no Relatório Nacional da Execução da Meta 2, ENASP (baixe aqui), diz algo alarmante. A cada 100 assassinatos cometidos no Brasil, NO MÁXIMO 8 são solucionados. Isso mesmo: OITO!

Esse número se torna ainda mais grave quando levantamos o número de assassinatos cometidos no Brasil, 50 mil a cada 12 meses. Conclusão: O Brasil é um paraíso para assassinos e pouco se faz para que esse cenário mude. Polícias sucateadas, falta de ferramentas, treinamento pífio, profissionais que recebem uma merreca, corrupção, … tudo isso contribui para o nosso pentacampeonato mundial de fut … ops …

Nosso país, que não possui conflitos religiosos ou étnicos, de cor ou de raça, sem disputas territoriais ou de fronteiras, sem guerra civil ou enfrentamentos políticos levados ao plano da luta armada, consegue exterminar mais cidadãos do que muitos dos conflitos armados contemporâneos, como a guerra da Chechênia, a do Golfo, as várias Intifadas, as guerrilhas colombianas ou a guerra de libertação de Angola e Moçambique ou toda uma longa série de conflitos armados acontecidos já no presente século. No contexto internacional, o país ocupa a posição de número 9 em assassinatos e o PRIMEIRO em mortes por armas de fogo. Sim, é mais seguro você passar as férias no Iraque ou Síria do que viajar pelo nosso país. É mais fácil você ser morto por uma bala aqui do que no Afeganistão. Mas o que é pior? Esse número exagerado de assassinatos ou a não resolução dos mesmos?

O Mapa da Violência 2013 (baixe aqui) explica que os elevados níveis de mortalidade (por armas de fogo) no Brasil são causados principalmente pela:

Facilidade de acesso a armas de fogo. O arsenal de armas de fogo em mãos da população é vasto, estimado em 15,2 milhões, 6,8 registradas e 8,5 não registradas. Mas não é só essa farta disponibilidade de armas de fogo, e as facilidades existentes para sua aquisição, que levaram os níveis de violência letal do Brasil a limites insuspeitados e insuportáveis. É também a decisão de utilizar essas armas para resolver qualquer tipo de conflito interpessoal, na maior parte dos casos, banais e circunstanciais. A mistura da disponibilidade de armas de fogo e a cultura da violência vigente gera o caldo para a produção e reprodução da violência homicida no Brasil.

Cultura da Violência. Contrariando a visão amplamente difundida, principalmente nos meios ligados à Segurança Pública, de que a violência homicida do país se encontra imediatamente relacionada às estruturas do crime, e mais especificamente à droga, diversas evidências, muitas delas bem recentes, parecem apontar o contrário.

Um estudo elaborado a partir de inquéritos policiais referentes a homicídios acontecidos em 2011 e 2012, em 16 Unidades da Federação, apontou que 83% dos homicídios no Acre e 82% em São Paulo foram por motivos fúteis. Conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, vinganças pessoais. Os estados com menores índices foram Rio Grande do Sul: 43% e Rio de Janeiro: 27%.

Impunidade. Um terceiro fator de peso são os elevados níveis de impunidade vigentes, que atuam como estímulo para a resolução de conflitos pela via violenta, diante da escassa probabilidade de punição.

O pior é que estamos cansados de explicações. O povo não quer explicação e sim ação. O Rio de Janeiro é o estado campeão em homicídios não-solucionados, 60 mil. Desses 60 mil, 24 mil mortos sequer foram identificados. Minas Gerais vem em seguida com 20 mil homicídios cujo autor anda pelas ruas e pode sentar ao seu lado dentro do ônibus ou estar atrás de você na fila do banco. Mas nem tudo está perdido. Em março de 2011, um grupo especial chamado Honre (Grupo de Homicídios Não Resolvidos) foi criado em Curitiba para investigar cerca de 3.600 assassinatos não-solucionados na cidade anteriores ao ano de 2008. Quase dois anos depois, o grupo já havia resolvido 86,11% dos crimes. Hoje restam apenas 500 casos.

Creio que alguns de vocês já perceberam que morrem muito mais pessoas no Brasil do que a mídia “branca” costuma noticiar. Morrem muitos e seus assassinos continuam soltos, pra matar de novo. A mídia poderia ser uma grande aliada da sociedade pressionando autoridades, sendo um instrumento de justiça para o cidadão trabalhador, já que é isso que supostamente ela deveria fazer pois recebeu de graça uma frequência no espaço eletromagnético PÚBLICO para transmitir seu sinal. Não estou dizendo para o Jornal Nacional passar uma perna boiando num lago no horário nobre, mas que tal trocar uma matéria de cinco minutos mostrando o sucesso do cabelo do Neymar na Espanha por uma onde especialistas discutem uma forma das autoridades mudarem esse quadro?

E a crítica não vai só para os outros. Devemos olhar para nós mesmos e fazer uma auto-análise. Qual o motivo de tanta selvageria? Onde está a compaixão? Solidariedade? Por quê tantos crimes fúteis? O vizinho que mata o outro vizinho por causa de barulho, o tio que mata o sobrinho porque o irmão não o visitou na prisão. E aquele horrendo duplo assassinato no Maranhão durante uma pelada? Em uma partida de futebol de várzea, um jogador irritado por ter sido expulso agrediu a socos e pontapés o juiz. O que o juiz fez? Cravou uma faca no peito do agressor que morreu a caminho do hospital. Revoltados, torcedores que presenciaram a cena amarraram, torturaram, apedrejaram e esquartejaram o juiz. Enquanto sua cabeça era espetada numa estaca, testemunhas filmavam com seus celulares. Não podemos exigir dos outros aquilo que não fazemos.

Com relação a perna, continuo perguntando. De quem é a perna?



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"Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz." (Platão)
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