Valentina, a garota que se recusou a morrer

Quando eu a vi pela primeira vez, ela parecia mais uma sombra do que um ser humano, uma aparição esquelética num país onde cadáveres enchiam as estradas e campos.
Valentina, a garota que se recusou a morrer
Valentina - a garota que se recusou e morrer - Capa

Valentina Iribagiza

O terrível genocídio em Ruanda completou 20 anos neste mês de Abril de 2014. Como eu disse no post anterior, é difícil escrever um texto sobre este episódio. O que contar? Talvez a melhor homenagem fosse contar as histórias de todos que perderam a vida neste triste episódio. E quantas vidas se foram, quantas histórias deveriam ser contadas, mas nunca serão. Nunca conheceremos nem sequer 1% das vítimas do genocídio em Ruanda. Um memorial na capital Kigali possui milhares de fotos das vítimas, mas como você viu no post anterior, seus nomes permanecem desconhecidos. Apenas sabemos que estão mortos. Quem assistiu ao vídeo editado pelo blog, chorou em silêncio com as imagens de Valentina, uma menina Tútsi de apenas 13 anos mutilada impiedosamente por uma horda de Hutus. Sua família foi inteiramente morta e, ao ser encontrada, estava desnutrida e com horríveis ferimentos. Teria Valentina conseguido sobreviver ao massacre? 

O texto abaixo é uma tradução livre de uma matéria publicada em 1997 no jornal britânico The Sunday Times e escrita pelo jornalista Fergal Keane, que inclusive pode ser visto no vídeo. Conhecer a história de Valentina é tentar ter um vislumbre da história de cada uma das vítimas do genocídio, sejam aqueles que morreram sejam os que conseguiram sobreviver. Vinte anos depois as cicatrizes continuam abertas, mas em Valentina, elas são mais do que lembranças.

A Garota Ruandesa que se Recusou a Morrer


Por Fergal Keane, repórter da rede britânica BBC que cobriu o massacre em Ruanda

Quando eu a vi pela primeira vez há quase três anos atrás, ela parecia mais uma sombra do que um ser humano, uma aparição esquelética deitada numa cama dobrável num país onde cadáveres enchiam as estradas e campos.

Sua mão havia sido fatiada pela metade e a ferida havia infeccionado. A cor era de um sinistro preto. Além disso, haviam dois rasgões profundos na parte de trás de sua cabeça. Não haviam analgésicos ou anestésicos no pequeno quarto que ela compartilhava com outras três crianças. Quando chegavam os momentos de troca de roupas, a garota estremecia e chorava de dor. Eu dei à enfermeira meu estoque de paracetamol e uma bolsa cheia de doces. Era uma oferta inadequada, mas o único conforto que eu podia oferecer.

A enfermeira me disse que o nome da criança era Valentina. Ela tinha 13 anos e sua família havia sido morta num massacre realizado por soldados e militantes Hutu algumas semanas antes, na paróquia próxima de Nyarubuye. Valentina estava entre um grupo pequeno de sobreviventes. “Ela provavelmente vai morrer”, disse a enfermeira.

Valentina - a garota que se recusou e morrer - Valentina

Valentina. Foto: Ghosts of Rwanda – PBS 2004.

Pouco tempo depois, eu deixei Ruanda jurando nunca mais voltar. Em poucas semanas eu havia presenciado uma brutalidade e maldade numa escala aterrorizante. Nada poderia ter me preparado para a imensidão dos assassinatos e ódio entre os que realizaram a matança.

Contudo, Ruanda não foi embora, e nem a memória de Valentina e outros sobreviventes do genocídio. Eu me deparei com o interminável questionamento: como isso pode ter acontecido? Como as pessoas podem massacrar crianças? Que tipo de homem poderia matar uma criança?

Eu ainda estava à procura da resposta quando retornei, três anos depois. O país havia mudado dramaticamente. As escolas haviam sido reabertas e os campos estavam cheios de pessoas colhendo suas lavouras. O som de tiros havia sido substituído pelo antigo refrão da vida nas aldeias africanas: bebês chorando, cabras relinchando e o interminável cantar de galos.

A igreja que havia sido o ponto principal do massacre estava limpa, os corpos removidos e colocados em uma série de quartos por perto. Esses quartos também haviam sido cenário de assassinatos particularmente brutais. Agora o governo estava preservando-os, repletos de esqueletos e cadáveres em decomposição, como um memorial ao genocídio.

Minutos depois de minha chegada a Nyarubuye eu descobri que Valentina não havia morrido. Pouco depois da última vez que a vi, ela foi transferida para um hospital e, contra as probabilidades médicas, sobreviveu aos ferimentos. Agora, encontrando-a em frente à igreja, eu via uma bela e alta jovem de 16 anos que em nada se parecia com a criança desnutrida de três anos antes. Mas não muito tempo se passou para que eu percebesse que a nova aparência era enganosa. Enquanto Valentina pacientemente me contava toda a sua terrível história, me deparei com meus sentimentos variando entre choque e raiva.

A história do que aconteceu na igreja em Nyarubuye é mais que um comentário direto sobre a capacidade humana de praticar o mal. É uma história muito particular sobre a crueldade infligida a crianças por adultos, pessoas em quem elas confiavam, seus vizinhos.

Começou numa tarde de sexta-feira no meio de Abril. Há dias os Tútsis de Nyarubuye haviam previsto um desastre iminente. Eles estavam cientes de que em outros lugares o massacre de sua raça já havia começado. Dez dias antes, Juvénal Habyarimana, presidente de Ruanda, havia sido assassinado, provavelmente por membros de seu círculo político.

Apesar de ser Hutu, Habyarimana vinha sendo visto como tendo se tornado fraco em seus acordos com os Tútsis e os grupos moderados de oposição Hutu. Os extremistas temiam que o acordo de divisão de poder assinado por Habyarimana enfraqueceria seu poder e privilégio financeiro.

Sua morte – que os extremistas atribuíram aos Tútsis – forneceu o pretexto para uma “solução final”, que sugeria que todos os Tútsis e Hutus moderados fossem mortos. Isso resultaria no assassinato da grande maioria da comunidade Tútsi de Nyarubuye.

A matança em Nyarubuye começou com um ataque aos Tútsis no mercado local. Depois disso, Valentina foi para a igreja com sua família. Naquela tarde os assassinos chegaram, liderados por Sylvestre Gacumbitsi, o prefeito local. Valentina reconheceu muitos de seus vizinhos Hutus entre os mais de 30 homens que cercavam a igreja. Eles carregavam facões e porretes e eram apoiados pelos soldados do exército ruandês.

Entre a quadrilha de homens estava Denis Bagaruka, um senhor de 56 anos cujos próprios netos iam à escola com Valentina.

Ela descreveu o que aconteceu a seguir:

“Primeiro eles pediram às pessoas pra dar seu dinheiro, dizendo que poupariam quem pagasse. Mas após pegar o dinheiro eles os matavam mesmo assim. Então eles começavam a jogar granadas. Eu vi um homem ser despedaçado no ar por uma granada. O líder dizia que eles eram cobras e que para matar cobras era necessário esmagar suas cabeças”.

Os assassinos se moviam em direção à multidão aterrorizada de homens, mulheres e crianças, cortando-os e espancando-os à medida que andavam. “Se eles encontrassem alguém vivo, esmagariam sua cabeça com pedras. Eu os vi pegando crianças pequenas e esmagando suas cabeças uma à outra até que morressem. Eram crianças implorando por misericórdia, mas eles as matavam sem hesitar”, ela me disse. Os assassinatos dominaram o lugar por mais de quatro dias. À noite os carniceiros descansavam e vigiavam o local para que ninguém escapasse.

Outras crianças, que choravam no chão ao lado de seus pais assassinados, foram levadas e mergulhadas de cabeça em latrinas. Um dos colegas de classe de Valentina, um garoto de rosto angelical chamado Placide, me contou como ele havia visto um homem ser decapitado na frente dele e depois uma grávida sendo mutilada enquanto o assassino atingia seu frenético clímax.

Havia tanto barulho”, lembra ele. “As pessoas estavam implorando por misericórdia e você podia ouvir a milícia dizendo ‘pegue-os, pegue-os, não os deixem ir embora'””.

Valentina e Placide se esconderam entre os corpos, fingindo estarem mortos. Valentina havia sido atingida na cabeça e mãos com um facão e sangrava bastante. Seguindo seu instinto de criança, ela rastejou até o corpo de sua mãe e deitou lá. Durante a matança, ela havia visto a milícia matar seu pai e seu irmão de 16 anos de idade, Frodise.

Depois de vários dias, Valentina rastejou até o quarto onde haviam poucos corpos. Pelos 43 dias seguintes ela viveria entre os corpos se decompondo, muito fraca para se levantar e se convencer de que o mundo havia acabado.

Eu rezava para morrer porque eu não conseguia ver uma vida futura. Eu não achava que alguém havia sido deixado vivo no país. Eu achava que todos haviam sido trucidados”, diz ela.

Ela bebia água da chuva e vasculhava por restos de comida. Haviam algumas frutas selvagens e grãos, mas ela ficava mais e mais fraca à medida que os dias passavam. Nas semanas que se seguiam, outras crianças emergiam de esconderijos ao redor da igreja. Os mais fortes acendiam fogueiras e coziam o que conseguiam encontrar, alimentando os mais fracos, como Valentina.

Então, um novo perigo surgiu: cães selvagens começaram a comer os cadáveres.

“Os cachorros vinham à noite e comiam crianças mortas nos outros quartos. Um cachorro foi para onde eu estava e começou a comer um corpo. Eu peguei uma pedra e joguei nele, espantando-o.”

E então chega um ponto dessa história em que o vocabulário existente para sofrimento se torna inadequado, onde palavras murcham na face de uma escuridão implacável. Como repórter, eu considero essa a história de minha carreira mais difícil de contar. Como um pai, eu escutei a história de Valentina com um sentimento de coração partido. Eu me maravilho com sua coragem, mas me sinto profundamente raivoso que isso tenha acontecido a qualquer criança. Foi difícil manter esses sentimentos sob controle quando confrontei um dos assassinos de Nyarubuye no escritório do promotor local.

Bagaruka, o avô que, segundo testemunhas, era um entusiasmado assassino, havia recentemente voltado da Tanzânia. Ele havia passado quase três anos no campo de refugiados em Benaco, onde a comunidade internacional alimentava e cuidava dele e de sua família. O homem que havia ajudado a trazer terror às crianças de Nyarubuye estava nervoso e evasivo quando falei com ele.

“Você tem 8 filhos. Como, pelo amor de Deus, você poderia ajudar a matar uma criança?” eu perguntei. Depois de uma longa pausa ele respondeu: “Sabe, todas aquelas pessoas na igreja tiveram filhos. Muitos estavam carregando as crianças em suas costas, mas nenhum sobreviveu. Todos foram mortos. Não podíamos poupar as vidas das crianças. Nossa ordem era matar todo mundo.”

Ele me disse que ele mesmo havia sido órfão e um homem Tútsi o cuidara como seu guardião. Bagaruka havia visto o homem ser morto em Nyarubuye. “Eu quase fico louco quando penso nisso”, ele disse.

Bagaruka confessou alguns de seus crimes e implicou alguns de seus amigos e vizinhos, esperando escapar do pelotão de fuzilamento.

Valentina espera que ele nunca retorne à aldeia. Ela vive com uma tia e dois outros órfãos. O marido da tia e seus três filhos foram mortos em Nyarubuye.

A tia me contou que Valentina tem um sonho recorrente. Ela imagina sua mãe vindo no meio da noite. Elas se abraçam e então Valentina mostra sua mão mutilada à ela, dizendo: “Mãe, veja no que eu me tornei. Veja o que aconteceu comigo”. E Valentina acorda chorando e vê que sua mãe desapareceu na escuridão. E então ela lembra que sua mãe está morta e se foi para sempre.

Nota do Aprendiz: Sylvestre Gacumbitsi, prefeito de Nyarubuye, incitou pessoalmente os moradores locais a matar Tútsis, tendo ele mesmo assassinado alguns deles. Em 16 de Abril de 1994, ele liderou uma horda de Hutus, incluindo até juízes, que promoveu um massacre na igreja católica de Nyarubuye, culminando na morte de 1.500 pessoas, incluindo a família de Valentina. Em Julho de 1994, com a FPR (grupo de oposição aos Hutus) tomando a capital Kigali, ele fugiu para a Tanzânia onde ficou até 21 de Junho de 2001, quando finalmente foi preso. Em 7 de Julho de 2006, Sylvestre Gacumbitsi foi condenado a prisão perpétua. O mesmo destino teve o padre da igreja, Athanase Seromba, que também participou da matança. Segundo uma reportagem do jornalista Jim Haddadin (Rwandan genocide survivor shares story in Melrose), Valentina Iribagiza, hoje com 33 anos, vive em Malden, Estados Unidos, cursa Enfermagem na Universidade de New Hampshire e trabalha no Hotel Fairmount em Boston. O sofrimento de Valentina pode ser visto abaixo aos 13m22s do vídeo.

Vídeo – Horror: 20 anos do genocídio em Ruanda


Universo DarkSide – os melhores livros sobre serial killers e psicopatas

http://www.darksidebooks.com.br/category/crime-scene/

Fontes consultadas: PBS Frontline; http://www.trial-ch.org/en/resources/trial-watch/trial-watch/profiles/profile/369/action/show/controller/Profile.html

Com colaboração de:


Tradução e revisão por:

ester

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"Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz." (Platão)
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