Todos os anos, começando em abril, o governo de Ruanda pede a seus cidadãos para “Kwibuka” – palavra que significa “lembrar” no idioma local. E o “lembrar” deste ano de 2014 é especial para eles, mas ao mesmo tempo doloroso. Sete de abril de 2014 marca o aniversário de 20 anos de um dos mais incompreensíveis episódios já testemunhados pelo homem.
É até difícil escrever um texto sobre o genocídio em Ruanda. Por onde começar? O que dizer? O que contar? Vinte anos depois, as feridas do que ocorreu no coração da África ainda sangram, não só para os habitantes de Ruanda, mas em todo o mundo. Durante cem dias, de abril a julho de 1994, vinte por cento da população do país foi simplesmente morta. Estimativas dizem que quase um milhão de pessoas foram assassinadas, o que faz deste genocídio um dos mais rápidos de toda a história. Mas como isso pôde acontecer?
A população de Ruanda era composta por duas etnias: os Hutus e os Tútsis. Diz-se que os Tútsis imigraram originalmente da Etiópia, chegando à Ruanda após os Hutus, originários do Chade. Os Tútsis tinham uma monarquia datada do século XV e as duas etnias conviveram pacificamente até a chegada do “homem branco”.
Em 1916, colonizadores belgas tomaram à força o poder em Ruanda. Ao chegarem lá, eles encontraram uma sociedade em que os Hutus eram camponeses pobres; os Tútsis, pastores prósperos. Para garantir a dominação do país, os belgas alinharam-se aos poderosos Tútsis e fizeram deles a aristocracia ruandesa. Para ajudar no processo e ganhar ainda mais a confiança e lealdade dos Tútsis, os europeus desenvolveram uma nunca comprovada teoria antropológica conhecida como “hipótese hamítica”, que colocava os Tútsis como uma raça oriunda da Etiópia e intelectualmente superior aos Hutus.
Em 1959 os Hutus rebelaram-se contra o sistema e em 1962 Ruanda declarou independência da Bélgica. O resultado disso foi que uma etnocracia substituiu a outra: Hutus simplesmente tomaram o lugar dos Tútsis. A partir daí Ruanda não mais teve paz. A violência tornou-se frequente até se agravar em 1990 com a formação da Frente Patriótica Ruandesa (FPR), criada pelos Tútsis a fim de combater a opressão dos Hutus. Em retaliação, Hutus extremistas criaram a ideologia Poder Hutu, que descrevia a FPR como uma força cujo desejo era reinstalar a monarquia Tútsi e escravizar os Hutus, o que não era verdade.
Na noite do dia 6 de abril de 1994, o avião que transportava o Presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e seu colega Cyprien Ntaryamira, presidente do Burundi – ambos Hutus – foi abatido, matando todos a bordo. O presidente morto foi substituído pelo grupo político Poder Hutu, que rapidamente tratou de culpar a FPR pelo acidente aéreo. Muitos acreditam que foram os próprios Hutus quem mataram o presidente, com objetivo de incitar os ruandeses contra a minoria Tútsi. A população passou a ser bombardeada com informações de que um complô Tútsi preparava-se para o ataque. O cenário para um dos piores genocídios da história estava armado.
Valendo-se do hamitismo, Hutus afirmavam que era preciso expulsar do país os “invasores” Tútsis. Esquadrões de civis foram formados para os assassinatos. Com uma organização meticulosa, listas com nomes de opositores ao governo Hutu foram entregues aos esquadrões para serem mortos, juntamente com todos os seus familiares. Em algo nunca antes visto, pessoas assassinavam seus vizinhos Tútsis, com os quais mantinham relações de amizade até o dia anterior. Maridos assassinavam suas próprias mulheres de origem Tútsi. Professores assassinavam alunos em sala de aula, padres e fiéis eram mortos dentro de igrejas; mulheres Tútsis eram mantidas como escravas sexuais. A maioria era morta a golpes de facão, machete e machado.
A mídia manipulada pelos Hutus colaborava não só propagando falsas informações sobre ataques da FPR, mas informando a respeito de lugares onde Tútsis poderiam ser encontrados e mortos. Os Hutus configuraram estações de rádio, jornais e TV, transmitindo propagandas de ódio, instigando as pessoas a “eliminarem as baratas”, ou seja, matar os Tútsis. Nomes de pessoas a serem mortas eram lidos em transmissões de rádio. Até mesmo padres eram orientados a matar Tútsis que porventura procurassem esconderijo dentro das igrejas.
Cem dias depois, cerca de 800 mil corpos de Tútsis apodreciam nas ruas.
Vinte anos depois, o horror ainda está na memória dos sobreviventes, e suas histórias assombram quem quer que as escute. O governo de Ruanda diz que “para que não nos esqueçamos e para que isso nunca mais volte a ocorrer, é necessário lembrar”. E vinte anos depois, o mundo todo relembra este triste episódio. Em dezenas de reportagens mundo afora, duas me chamaram a atenção. Em sua página na web, a CNN conta a história de Marie Jeanne. Marie tinha 16 anos quando o genocídio começou. Como centenas de milhares de mulheres Tútsis, ela foi estuprada sistematicamente por Hutus. Mantida como escrava sexual, ela conseguiu fugir e sobreviver ao massacre, mas não sem antes ser marcada com duas cicatrizes para o resto da vida: uma filha e o vírus HIV.
Neste ano de 2014, centenas de milhares de ruandeses estão prestes a completar seus vinte anos; em grande maioria, filhos e filhas de estupros. Kirezi, a filha de Marie, é uma delas. Ela não viu a matança e não sabe quem é o seu pai, mas convive com a dor de ser filha da violência e assiste diariamente sua mãe tomar o cocktail anti-Aids. Para Marie Jeanne, não há dúvidas; muitos Hutus portadores do vírus HIV deixaram suas vítimas vivas apenas para que elas convivessem com a bomba-relógio de ser um soropositivo numa época em que a AIDS ainda era sinônimo de morte.
O The Guardian traz o depoimento de uma adolescente que, assim como Kirezi, é filha de um estupro:
“Eu nasci na República Democrática do Congo após o genocídio. Minha mãe foi levada como escrava sexual, mas escapou durante uma batalha. Ela não gosta de conversar sobre o que aconteceu, mas ela me disse que eu nasci de um estupro. Eu não lembro exatamente quando ela me disse, mas eu acho que foi quando eu voltei da escola e todos haviam falado sobre seus pais. Eu fui para casa e pressionei-a para me dizer quem era meu pai. Ela não respondeu, mas um dia eu me recusei a ir para a escola até que ela me dissesse. Quando ela finalmente me contou, me senti muito triste, não somente por saber sobre meu pai, mas também por aborrecer minha mãe”.
Já o Daily Mail publicou uma história de dor e perdão: a história de Alice, uma mulher Tútsi mutilada a golpes de facão.
Para Alice, o genocídio começou em 1992, quando sua família buscou refúgio numa igreja. Dois anos depois, quando o genocídio realmente começou, um líder Hutu ordenou a um amigo Hutu de Alice, Emmanuel, que matasse com um facão qualquer Tútsi que ele avistasse. Emmanuel nunca havia matado ninguém antes, mas em 11 de abril ele assassinou 14 pessoas dentro de uma casa. No dia 12, ele matou um médico Tútsi, e no dia 13 assassinou duas mulheres e uma criança.
“Me senti mal pela primeira família que matei. Mas quanto mais diziam que os Tútsis eram maus, mais eu pensava que estava matando inimigos”, diz ele na reportagem.
A família de Alice refugiou-se numa igreja, como havia feito antes, juntamente de centenas de outras pessoas. Mas desta vez, Hutus jogaram uma bomba dentro da igreja e atearam fogo. Os que conseguiram sair das chamas foram mortos a golpes de machado e facão do lado de fora. Alice perdeu 26 familiares no ataque; cinco mil pessoas morreram somente neste episódio. Alice, com 25 anos na época, conseguiu fugir com sua filha de apenas nove meses e um sobrinho de nove anos.
Em 29 de abril, Emmanuel se juntou a soldados Hutus a procura de Tútsis para matar. Eles encontraram um esconderijo de Tútsis e massacraram todos ali, incluindo a filha e o sobrinho de Alice. Ela escapou mais uma vez e durante dias se escondeu em um pântano, mantendo apenas a parte superior do seu rosto de fora para que pudesse respirar. Encontrada, Alice foi colocada de joelhos para morrer a golpes de facão. Emmanuel, que tinha sido colega de escola de Alice, a reconheceu, mas não lembrava seu nome. Foi o próprio colega quem golpeou Alice. Instintivamente ela colocou o braço na frente da cabeça, tendo sua mão decepada pelo facão. Ela ainda teve o ombro perfurado por uma lança e o rosto cortado. Ao invés de terminar o serviço, Emmanuel deixou Alice agonizando. Talvez ele tenha tido “misericórdia” para com ela, ou talvez quisesse que ela sofresse mais.
Alice ficou entre a vida e a morte e foi encontrada três dias depois por outros sobreviventes. Só aí ela percebeu que não tinha mais a mão direita.
Na reportagem, Emmanuel diz que sonhou com suas vítimas nos meses seguintes ao genocídio. Em 1996 ele se entregou às autoridades. Ficou preso até 2003, quando o presidente de Ruanda perdoou os Hutus que admitiram sua culpa. Depois de solto, Emmanuel começou uma peregrinação atrás dos familiares das pessoas a quem ele havia matado para pedir perdão. Ele se juntou a um grupo de assassinos e sobreviventes do genocídio, os Ukurrkuganze, que semanalmente se encontram como forma de terapia.
Em 2004, um ótimo filme sobre o genocídio foi lançado. Hotel Ruanda conta a história real do hoteleiro Paul Rusesabagina, gerente do luxuoso Hôtel des Mille Collines, na capital Kigali, quando o genocídio explodiu. Enquanto o mundo ficou parado olhando as mortes, Paul abrigou mais de mil pessoas dentro do hotel. Para salvá-los, dava a eles água da piscina e comida. Ele também impediu a entrada de Hutus no hotel, que tentavam a todo custo persuadi-lo com cigarros e bebidas. Atualmente Paul vive em Kraainem, na Bélgica.
Para Paul Rusesabagina, é importante lembrar do que aconteceu em 1994. Mas como ele próprio diz, tais assassinatos em massa vem ocorrendo ao longo dos tempos. De tempos em tempos a história se repete, mas os humanos parecem não aprender quaisquer lições. Para ele, é apenas questão de tempo para que um episódio parecido ocorra de novo.
“A história sempre se repete. Nós vimos isso acontecer com os armênios, vimos no Holocausto. Em 1994 eu estava muito irritado com todos da comunidade internacional, pois pessoas estavam sendo massacradas, e eles estavam lá, mas não fizeram nada”, diz Paul.
Existem muitas razões pelas quais as pessoas matam umas às outras. Uma delas é, obviamente, má liderança. Quando líderes, muitos deles psicopatas, dizem aos seus liderados para matar pessoas, eles vão em frente e o fazem. Isso porque grande parte do mundo é pobre e sofre de uma má educação. Sem estudo ou instrução, a maioria tende a confiar em seus líderes.
Outro fator é a impunidade e omissão do Estado. Na Ruanda dos anos de 1950 e 1960, pessoas matavam seus vizinhos e ficavam com seus carros, casas e plantações. Muitos moravam em casas que não haviam construído, e tiravam seus sustentos de plantações e gado que nunca os pertenceram. Atualmente, a impunidade e omissão do Estado são dois problemas mundiais. No México, civis se armaram contra os narcotraficantes; no Brasil, a injustiça e impunidade fizeram crescer uma onda de justiceiros, movimento que começou com um ladrão sendo acorrentado a um poste em Copacabana em fevereiro e culminou com a morte de Isaías dos Santos Novaes, em Nova Crixás, Goiás, e de Alailton Ferreira, em Serra, Espírito Santo. Em ambos os casos, os supostos criminosos não tiveram suas culpas comprovadas e aparentemente foram bodes expiatórios de uma sociedade cega e doente.
Paul Rusesabagina está certo: os humanos nunca aprendem. E para nós, resta apenas esperar para saber onde será a próxima matança e torcer para que a multidão não nos aponte o dedo.
Abaixo, um vídeo editado pelo blog O Aprendiz Verde sobre o genocídio. Há uma reportagem legendada da rede CNN com Marie Jeanne e imagens da matança. Não recomendado para pessoas sensíveis. (O vídeo contém cenas de cadáveres, assassinatos e mutilamento).
Fontes consultadas: [1] Incredible story Rwandan genocide survivor (Daily Mail); [2] Rwanda stories: ‘I think my country will be very beautiful 20 years from now’ (The Guardian); [3] Remembering – and trying to forget – Rwanda’s genocide, 20 years on (CNN); [4] Ghosts Of Rwanda (Greg Barker, PBS, 2004); [5] O Mal do Século 20: Genocídio (Aventuras na História, 2004).
Siga OAV Crime no Instagram
Apoie o OAV
Apoie o nosso trabalho. O OAV Crime precisa do seu apoio para continuar a crescer, disponibilizando textos e podcasts de qualidade, assim como o desenvolvimento de outros projetos. Acesse a página abaixo e saiba como apoiar.
Por:
Com colaboração de:
Revisão e correção por: