
“Em sua obra de referência A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1899, Sigmund Freud cita Platão ao tratar da diferença entre os cidadãos comuns e os criminosos: ‘Os bons homens se limitam a sonhar aquilo que os maus praticam‘. O que Freud quer dizer é que, nas profundezas do inconsciente, mesmo o indivíduo mais moralmente correto abriga fantasias de comportamento proibido – de luxúria selvagem e violência primitiva. Mas a citação implica outra coisa também: que o que diferencia ‘homens maus’ (e mulheres) do resto de nós é a vontade que os primeiros têm de pôr em prática seus desejos mais obscuros”.
[Harold Schechter – Anatomia do Mal]
Ainda citando Schechter, depois de um longo dia no escritório, por exemplo – onde mais uma vez preterido para uma promoção e ficou constrangido por se sentir atraído por uma linda estagiária com idade para ser sua filha -, um homem bem casado e cumpridor das leis pode adormecer e sonhar em assassinar o patrão e atacar sexualmente a garota. É provável que ele acorde se sentindo tão abalado e culpado que apague da cabeça toda a lembrança desse sonho assustador.
Para um serial killer, por outro lado, imagens mentais de violência e estupro não estão no âmbito do pesadelo; ao contrário, fazem parte de suas fantasias prediletas. Longe de tentar afastar esses pensamentos doentios da cabeça, ele irá cultivá-los – mergulhar neles. A lembrança de uma ofensa real ou imaginada o inspira a vislumbrar as formas mais sádicas de vingança. A visão de uma garota bonita evoca pensamentos de rapto, tortura sexual, assassinato e mutilação. Por dias, semanas, meses, ele irá se masturbar imaginando tais atrocidades.
Após muitos anos de pesquisa, a Unidade de Ciência do Comportamento do FBI concluiu que o assassinato em série tem início na infância do agressor; ele se programa desde cedo através de um intenso e progressivo ciclo de fantasia. A definição de fantasia neste contexto é um pensamento mental elaborado associado no processo do sonhar acordado.
“As fantasias depravadas dos serial killers começam em uma idade precoce. Enquanto outros meninos sonham em marcar a corrida da vitória em um jogo de beisebol da liga juvenil ou em se tornar um membro dos X-Men, esses psicopatas em desenvolvimento já estão perdidos em devaneios de sadismo e assassinato em massa. Em seu estudo pioneiro, Sexual Homicide, publicado em 1988, Robert Ressler, John Douglas e a colaboradora deles Ann Burgess discorrem sobre um assassino em série que, quando garoto, deixava os professores loucos por passar muito tempo absorto nos próprios pensamentos durante as aulas. Quando psiquiatras lhe perguntaram mais tarde no que ele tanto pensava, ele respondeu: ‘Em aniquilar a escola inteira’. Na tenra idade de 12 anos, outro futuro assassino sexual era tão obcecado com fantasias masoquistas de morte lenta e angustiante que costumava forçar a irmãzinha a amarrá-lo em uma cadeira e fingir que o executava em uma câmara de gás.”
[Schechter – Anatomia do Mal]
John Douglas cita em seu blog Mindhuntersinc que após décadas de estudos dos mais diversos predadores sexuais – incluindo Ed Gein e Gary Heidnik – e analisando seus crimes, ele e seus colegas do FBI chegaram à conclusão de que em todos os casos, sem exceção, o ato de assassinar é precedido pela fantasia. Enquanto algumas pessoas bebem em excesso para se livrar de suas ansiedades e outras se voltam para as drogas, jogatina ou se exercitam até à exaustão, os serial killers são consumidos por suas violentas fantasias sexuais, sendo um meio de escapar da realidade, preenchendo o vazio da desesperança. Em seus pensamentos, sua própria inutilidade ou insignificância é percebida. Controlar e dominar outro indivíduo de sua escolha passa a ser uma paixão que os consome, uma libertação temporária de sua ansiedade e uma comprovação de que não é insignificante, mas poderoso. A fantasia é o ingrediente crucial da mente do serial killer, um vício.
Ex-policial nova-iorquino, Gilberto Valle frequentava sites dedicados a fetiches envolvendo morte e sexo. Gostava de detalhar seus planos de sequestrar mulheres, afirmando que iria torturá-las, matá-las e comê-las. Ele possuía uma lista de potenciais vítimas, incluindo amigas e sua esposa. Em uma sala de bate-papo na Internet, relatou: “Eu quero que ela [vítima] experimente ser cozinhada viva. Ela será amarrada como um peru… aterrorizada, gritando e chorando.” Em outra conversa, ele descreve o que gostaria de fazer com uma amiga da esposa, a qual ele iria visitar no dia seguinte: “Sequestrar e cozinhar a Kimberly… Eu vou olhar para ela da cabeça aos pés, lambendo meus lábios, desejando o dia em que colocarei um pano encharcado de clorofórmio em seu rosto.” Delatado pela mulher que descobriu seus sinistros fetiches e por ter invadido o banco de dados da polícia para listar potenciais vítimas, o ex-policial foi preso antes que pudesse colocar em prática suas macabras fantasias (se é que ele realmente cruzaria a linha da fantasia e realidade).
“Fantasia não é crime. Pode fantasiar à vontade. Pode ter fantasia homicida, sexual, pode ter todo dia, qual o crime? Crime é o que a sociedade estabelece como crime… Problema é você sair da fantasia e passar pra realidade, e aí você tá rompendo a linha que a sociedade determinou.”
A fantasia pode ser experimentada através de imagens e/ou sentimentos mentais, e uma de suas funções é aliviar a ansiedade ou o medo; de uma forma ou de outra, a maioria das pessoas a tem. Embora algumas fantasias na infância sejam normais, ela pode se tornar uma forma compulsiva de escapismo em crianças que são abusadas, negligenciadas ou sofreram algum tipo de trauma.
Muitos assassinos em série confessaram tanto o trauma quanto uma mórbida preocupação com a fantasia durante a infância. Ed Kemper, por exemplo, que foi severamente abusado quando criança por sua mãe, disse:
“Eu sabia que ia matar muito antes de começar a matar, sabia que as coisas acabariam desse jeito. As fantasias eram fortes demais. Estavam acontecendo há muito tempo e eram elaboradas demais.”
Quando as fantasias são combinadas com a masturbação, um componente sexual é adicionado ao processo cognitivo ou mental. Entrevistas profundas com serial killers capturados revelaram que os traços na infância mais comum entre eles, que se estendem para a adolescência e fase adulta, são os pensamentos homicidas e a masturbação compulsiva. Infames assassinos em série como Jeffrey Dahmer e David Berkowitz afirmaram que suas bizarras fantasias se desenvolveram durante o isolamento na adolescência, assim como a masturbação e poderosos sentimentos de raiva e fúria.
“Eu fiz a minha fantasia de vida mais poderosa do que a minha vida real.”
[Jeffrey Dahmer]
O isolamento e os sentimentos de raiva e ressentimento muitas vezes se tornam parte de um processo cíclico na vida de jovens serial killers. As fantasias de violência os levam a um isolamento da sociedade, o que, por sua vez, cria uma maior dependência da fantasia – para obter prazer e ao mesmo tempo alívio. Serial killers geralmente fantasiam sobre assassinatos e violência sexual por anos antes de fazer a primeira vítima.
“Conforme os psicopatas atingem a puberdade, suas fantasias vão se tornando cada vez mais sexuais e assustadoramente aberrantes. Fantasias adolescentes normais de sexo selvagem com um parceiro entusiasmado são substituídas, na mente psicopata, por pensamentos sádicos de dominação e degradação, perversão e dor.”
[Schechter – Anatomia do Mal]
Eventualmente, serial killers em formação atingem um ponto em que precisam realmente viver suas fantasias mais sombrias. Em sua maioria, eles obsessivamente refletem cada minuto do seu primeiro assassinato por anos a fio enquanto mentalizam o próximo. Eles podem entrar em um estado de quase transe, mergulhado na fantasia, nos dias anteriores ao assassinato. A vítima pretendida é reduzida à uma infeliz marionete que apenas servirá para alimentar sua macabra fantasia de sexo e assassinato.
Após cometer o primeiro assassinato, serial killers se tornam obcecados com a necessidade de matar. Tendo encontrado a chave para liberar seus desejos secretos, eles continuam a matar para experimentar a fantasia de novo e de novo. Matando cada vez mais, alguns assassinos em série podem ficar entediados com sua fantasia original, então eles atualizam partindo para fantasias mais elaboradas ou violentas, se tornando mais obsessivos, uma escalada viciante e orgástica. Dennis Rader e Jeffrey Dahmer são dois ótimos exemplos de serial killers cujas fantasias se escalaram em horror à medida em que os anos passavam e a contagem de vítimas aumentava. Dahmer confessou que começou a se masturbar aos 14 anos, valendo-se de fantasias homossexuais convencionais de sexo com homens jovens e másculos. Alguns anos mais tarde, no entanto, ele tinha orgasmos ao imaginar que deixava seus parceiros inconscientes e expunha suas vísceras.

Em 27 anos, Dennis Rader assassinou 10 pessoas. Entre os assassinatos, Rader parecia alimentar suas fantasias vestindo as roupas íntimas de suas vítimas, entregando-se ao seu fetiche bondage. Ele tirou fotos perturbadoras de si mesmo, usando sua câmera Polaroid, colocando-se no lugar de suas vítimas, amarrado, enterrado, dependurado em árvore…
Nota: Bondage é um tipo específico de fetiche, geralmente relacionado com sadomasoquismo, onde a principal fonte de prazer consiste em amarrar e imobilizar seu parceiro ou pessoa envolvida. Pode ou não envolver a prática de sexo com penetração.
“Estou tentando não ter mais aqueles pensamentos. Estou tentando ter mais controle sobre minha vida, tentando ficar longe de todas aquelas fantasias. É a única maneira para mim agora. Todas as vezes quando acordo de manhã as fantasias começam – é quando ela são mais poderosas e incontroláveis, sempre foi assim. Paula [esposa] sempre se levantava diante de mim e eu ficava deitado pensando em todas essas coisas. Mas agora eu tento bloquear as imagens. Eu tento e penso na Paula e nas crianças e em todas as coisas que eu irei ler e escrever durante o dia. E, em vez de desenhar imagens bondage, eu desenho rostos felizes. E eu leio a Bíblia… Tudo foi psicológico. Todo o meu negócio quando eu entrava na casa de alguém era baseado na fantasia do bondage. Eu gostava especialmente do auto-bondage. Eu não era um sádico. Eu nunca arranquei as unhas de ninguém. O sexo também nunca foi uma parte da minha fantasia. Eu queria poder. Eu acho que era isso que eu realmente procurava… A fantasia é melhor do que o crime, porque em minhas fantasias, tudo está sob controle. Eu sou o diretor e o ator principal Como eu já te disse antes, é como assistir a um filme. Eu me vejo cometendo o crime, fazendo todas as coisas, sem ter dor de cabeça ou frustração. Na vida real, as coisas nunca acabavam do jeito que eu queria. Minhas vítimas sempre pareciam reagir de maneiras que eu não havia planejado.”
[Dennis Rader, em entrevista a John Douglas – Inside the Mind of BTK, 2008]
De muitas maneiras, a chave para desbloquear a mente patológica de um serial killer reside na natureza ou conteúdo de sua fantasia e como ele a atualiza. Impulsionados por uma fantasia obsessiva, serial killers são compelidos a assassinar repetidamente para satisfazer seus desejos. Entretanto, a brutal e bagunçada realidade do assassino pode nunca satisfazê-lo completamente.
“Serial killers têm um vínculo frágil com a realidade. Eles vivem dentro das próprias cabeças, trancados em um mundo de sonhos bizarros e patológicos. Isolados do convívio social, não constrangidos por escrúpulos de consciência, dotados de um narcisismo infantil que coloca suas próprias necessidades sórdidas acima de todas as outras preocupações – eles acabam cruzando a linha que separa a imaginação da realidade e põem em prática os horrores que vinham acalentando há tanto tempo.”
[Schechter – Anatomia do Mal]
As consequências do assassinato geralmente resultam em uma decepção emocional para o assassino (já que ele nunca se satisfaz por completo), assim a fantasia nunca desaparece, pois está profundamente enraizada em sua mente e psique. Ao elaborar suas fantasias, Ted Bundy disse que:
“a fantasia que acompanha e antecipa o crime é sempre mais estimulante do que o resultado imediato do próprio crime”.
Quando um serial killer fica desapontado com a incapacidade de experimentar sua fantasia definitiva na vida real exatamente como ele imaginou em sua mente, ele continuará a matar na tentativa de alcançá-la; tal é a natureza obsessiva, compulsiva e cíclica do assassino em série.
“Minha pesquisa me convenceu de que a chave não era o trauma inicial, mas o desenvolvimento de padrões perversos de pensamento. Esses homens foram motivados a assassinar por suas fantasias.”
[Robert Ressler]
Analisando o fenômeno dos serial killers, elementos emergem, os quais podemos estudar para entender o comportamento do homicida em série. O instinto de repulsão da morte, presente em todos os seres humanos, está enfraquecido ou inexiste no serial killer. Eles se sentem atraídos pela morte e por tudo o que diz respeito a ela. A fantasia tem um papel fundamental empurrando o assassino em série para um mundo imaginário, onde ele encontra mais satisfação do que no mundo real. Antes de matar, ele experimentará o assassinato em sua imaginação. Se ele se satisfazer com a primeira fantasia, ele criará outras, imaginando uma próxima vítima para sacrificar, só assim ele alimentará a fantasia, temporariamente. Esse ciclo só pode ser interrompido se ele for preso ou morrer.
Fontes consultadas: [1] Serial Killers – Anatomia do Mal; [2] minhuntersinc; [3] Nicola Malizia – Serial Killer: The Mechanism from Imagination to the Murder Phases. Disponível em: file.scirp.org/Html/2-3800472_74772.htm; [4] Sexual Homicide: Patterns and Motives;
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